A PRIMEIRA AVENTURA DO VELHO PADRE E DO GATO PRETO >> Zoraya Cesar


A bolinha negra de pelo molhado estava com fome, frio, sede e medo. Miava de dar dó, num lamento que, à noite, parecia uma assombração escondida no matagal.

Na solidão noturna da estrada, um ou outro transeunte que passou persignou-se e saiu correndo, t’esconjuro!

Seu destino parecia selado pelo abandono e pela madrugada enregelante que se avizinhava.

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A mulher andava encolhida; ela, também, com frio e medo. Vestia-se toda de preto, a fim de mesclar-se com a escuridão. Não eram tempos fáceis, nos quais superstições e ignorância faziam aflorar o pior do ser humano. Ser mulher, independente e curandeira era um chamariz para o perigo. E o perigo terminava em chamas de fogueira. Passar despercebida era sempre um bom alvitre.

Por não temer o desconhecido, ela se agachou para ver o que havia entre as folhagens. Um par de olhos amarelos brilhavam no breu. Era só o que me faltava, resmungou. Podia ser um cãozinho, um gambá, qualquer coisa, mas não, tinha que ser um gato, e um gato preto!

No entanto, não podia deixar o coitado entregue à desdita de morrer de fome, frio ou espancado por algum imbecil que o tomaria como emissário do Demo.

Aconchegou a bolinha de pelos debaixo de sua capa e acelerou o passo. Destino é destino, pensou.

A choupana, velha e desgastada, tinha apenas um cômodo. Havia uma enxerga dura e um balcão repleto de potes, ervas, um pequeno caldeirão. Costumava ser um lugar de cura e acolhimento; agora era um refúgio abandonado e considerado moradia do Decaído.

A mulher cuidou do gatinho e deitou-se. Assim como essa casa, estou velha e cansada. Meu tempo acabou. Em breve morrerei. Tenho de arranjar um lugar para o bichano.

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O rapaz, imberbe de tão novo, ainda tinha os olhos arregalados e inocentes de quem tem a voracidade de querer tudo entender.

Confinado no mosteiro, aprendera as letras, as ciências, os segredos da ervas. E logo cedo descobriram que o noviço tinha o poder dos exorcistas.

Quando chegou o momento, seu orientador saiu com ele às ruas, mostrando a realidade do mundo. E o rapaz pôde ver toda a miséria da alma humana, a pobreza, a riqueza excessiva, a sordidez, todos os sete pecados (às vezes numa mesma pessoa), a hipocrisia, a indiferença. Mas viu também a bondade, o desapego, a virtude, o verdadeiro Amor. Amadureceu em poucos meses tudo o que não amadurecera em anos de mosteiro. Esse é meu rumo de vida, mas preciso descobrir qual a minha missão.  

Enquanto não se definia, ajudava aqui, curava ali, exorcizava acolá.  

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Eles chegaram de surpresa, violentos, cheios de furor divino.

Arrastaram a mulher para fora aos gritos, pancadas, cusparadas. Amarram seu pescoço em uma grossa corda e a penduraram numa árvore. Enviada de Satanás, prostituta das trevas, perdida, devoradora de almas, herege, pecadora, morte, morte, morte.

A mulher se retorcia em agonia, rezando para aquilo acabar logo, mas só chorou, implorou, suplicou quando trouxeram o gatinho para matá-lo na sua frente, antes de enforcá-la. Os homens riam. Eram só quatro, mas pareciam legião. A cena era tão grotesca como um quadro de Goya, igualmente assustadora.

Do nada, os homens se calaram e quedaram-se imóveis.

Um jovem surgira de repente, o semblante severo, mirrado em sua batina marrom.

- O que está acontecendo aqui?

- Vamos pendurar essa vadia do inferno, Padre, e acabar com seu companheiro demoníaco.

O padre ficou calado, sua revolta latejando nas têmporas. O Mal não cansa de usar o Senhor como um indulto para perpetrar barbaridades? Já não bastava alguns de seus próprios pares instigarem aquele terror chamado Inquisição? A ignorância e as paixões baixas, eis os grandes combustíveis da violência, que ele tanto detestava.

Os homens aguardavam, frementes de excitação. Aquele padre novinho era bem respeitado, diziam que expulsava demônios. Será que iria ajudá-los em sua tarefa? Enforcaria ele mesmo a bruxa, afogaria o gato?

- Você, largue a corda. Você aí, solte esse gato. Eu cuido disso. Estão malucos? O demônia sairia dela e possuiria vocês. Fujam. Agora. Corram.

Falou com tal autoridade que os homens mal esperaram ele levantar o terço e começar a rezar. Desabalaram sem olhar para trás, frustrados por serem interrompidos, mas felizes por se verem livres de uma possessão.  

O jovem aproximou-se da mulher machucada, uma enorme cicatriz no pescoço onde a corda apertara. Ela tremia, totalmente apavorada, o padre ia mandá-la pra fogueira, era melhor ter sido enforcada, e sabiam os Deuses o que aconteceria com o gatinho.

Para sua surpresa, o padre carregou-a para a choupana, levando o gato no bolso. Lá dentro, olhando em volta reconheceu todas as ervas e preparou, para a mulher, uma compressa de arnica para pensar os ferimentos; e, para ambos, um chá de valeriana – ele também estava nervoso. A mulher, em choque, nada entendia. Um religioso? Salvando a vida de uma ‘bruxa’?

Como se adivinhasse seus pensamentos, ele respondeu.

- Se eu não tivesse feito aquele teatro, eles se voltariam contra mim, você estaria morta e eu denunciado ao Santo Ofício. Às vezes a gente tem de jogar o jogo do inimigo para poder vencer.

Depois de descansarem, o jovem padre juntou numa sacola os poucos pertences da mulher, algumas ervas e disse:

- Não é uma boa época para mulheres como você. E isso não mudará durante a nossa vida. Finja e fuja. Procure as irmãs da Sororitas Palae Medicus daqui a duas cidades ao Norte. Diga que fui eu que mandei. Lá você estará disfarçada de religiosa e protegida. E seus conhecimentos serão úteis.

Velha, cansada e realizando o horrível destino que a esperava se continuasse ali, ela obedeceria. Mas e o gato?

- Vou protegê-lo com minha vida se for preciso. Algo me diz que eu e ele tínhamos de nos encontrar.

Ao sair, ela lhe deu um amuleto de turmalina negra e hematita:- para seus combates contra o Mal, Padre. Ele aceitou, agradeceu e abençoou a mulher. Partiram.

Voltando à cidade, ele sorria, com o gatinho escondido na batina. Encontrara sua missão nessa vida. E nas outras, enquanto o Senhor assim o quisesse.

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O enorme gato, mais preto que as asas de um corvo, deitado languidamente junto aos portões de ferro de uma igreja antiga, apreciava o cair da noite, enquanto ouvia as movimentações no jardim escondido atrás do prédio.

Marta e uma velha Yabá organizavam a arrumação. Expedito e Jorge comentavam que as batalhas espirituais eram mais árduas que no seu tempo de militares. Oyá olhava, encantada, um dervixe rodopiar
ao vento. Um Djinn conversava animadamente com Miguel Arcanjo.

O felino balançava a cauda sinuosamente, antecipando, feliz, a chegada do aniversariante e de sua amada Maria.

Ouviu a voz alegre do Velho Padre dizendo a José, mais uma vez, que festas de aniversário eram as suas preferidas.

Velho Amigo, ficarei ao seu lado nesse Plano e no Outro, até a última de minhas sete vidas. E até lá, combateremos o Mal, ajudaremos pessoas e comemoraremos muitos Natais.

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Assim foi o primeiro encontro do Velho Padre e do Gato Preto.

Convido vocês a lerem as outras aventuras dessa dupla (logo abaixo do cartão). Ah, a história em que eles se reencontram com a mulher desse episódio está marcada em amarelo.

 

As aventuras do Velho Padre e do Gato Preto ao longo dos anos


Comentários

Anônimo disse…
Voltaire e Umberto Eco sempre voltam quando leio o padre e o gato preto da Zoraya. Aconteceu de novo. Lindo texto. Feliz Natal para todos. André Ferrer aqui.
Marcio disse…
Querido Papai Noel,
Você sabe que eu não acredito em você.
E você também sabe que esta carta é um mero pretexto para fazer esta mensagem chegar a quem eu quero me dirigir (e isso seria mais simples se eu apenas escrevesse para a autora, ora...).
Mas, superados os obstáculos acima, afirmo que fui uma pessoa exemplar durante todo este ano de 2025: olhei para os dois lados da rua antes de atravessar, mastiguei 20 vezes antes de engolir, sempre cumprimentei os vizinhos com bom dia/boa tarde/boa noite e, portanto, faço jus a um pedido.
Gostaria imensamente de ler os textos da Zoraya a cada quinzena desse novo ano.
Peço que Vossa Bomvelhinhança conceda a ela muita inspiração para explorar todos aqueles universos ficcionais que surpreendem os bem-aventurados que têm o privilégio de ler a obra dela.
Que ela tenha tempo, paz e energia para criar tudo aquilo que lhe fizer feliz.
E que, a cada Natal, ela nos traga mais uma aventura do Velho Padre e do Gato Preto.
Velho Nicolau, se você atender ao meu pedido acima, eu prometo que não vou ficar praguejando por aí que você parece um penetra na festa de aniversário dos outros.
Um abraço,
Marcio.
branco disse…
Me fez lembrar das lidas que dei em seus primeiros contos e, as vezes, lembrar é uma cosa tão boa!...

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