ESVAZIOU-SE>> Carla Dias


Jovem, era de escolher o torto, o complicado, evitar atalhos. Dedicadamente, lidava com a querença como se fosse um objeto a ser estudado com atenção. As pessoas se irritavam com isso. Questões simples, merecedoras de respostas quase automáticas, protagonizavam longas esperas. E quando a espera contava com espectadores ou, como ele gostava de dizer, “esperantes”, a plateia se incomodava com a função.

Por isso a família nunca gostou das apresentações dele na sessão de teatro improvisado na sala da avó — atriz famosa na cidade, palco compartilhado com os dezesseis netos. Os minutos gastos a observá-lo montar seus maquinários, dispor corretamente o tripé do quadro no qual desenhava exemplos enquanto apresentava suas ideias, pareciam uma eternidade. Era praticamente impossível evitar as bufadas ou uma fugidinha até a cozinha para um copo de água ou uma dose caprichada de café.

Mas ele não se permitia afetar por isso.

Havia tanto conhecimento nos seus projetos; ele sabia que poderiam ser importantes para a humanidade. O pai apostava nisso e apoiava as viagens do filho em busca de conhecimento.

Então, veio o tempo casado com a necessidade.

Depois da morte da avó, da briga voraz dos filhos pela parca herança, os pais do menino amargaram a mudança para os cafundós da cidade. Tudo diminuiu: a casa, o quintal — ele sempre gostou de bancar o explorador de amplos quintais —, o dinheiro do lanche, o material para suas experiências, os presentes de Natal, a mistura à vontade às quartas, os planos apresentados durante longas conversas sobre o futuro.

O futuro se tornou o bater o ponto da sobrevivência. Na nova escola, continuou como sempre: impopular, alvo de chacotas e extremamente curioso a respeito de tudo, mas de maneira mais estridente. Aproveitava todo o conhecimento recebido para criar o universo infiltrado em sua mente. Não tinha amigos, até os irmãos deixaram pra lá esse papel. E para ele estava tudo certo, porque nunca acreditou que o outro devesse a ele qualquer consideração que não fosse por gosto. 

Demorou, mas ganhou um par de amigos, pessoas que o acompanhariam pela vida, dispostas a escutar o que ele tinha a dizer. E oferecia o mesmo a elas. Adaptou seus projetos magnânimos à rotina do bairro, consertando o que, na maioria das vezes, os moradores achavam não ter jeito. Muitos o consultavam sobre burocracias — sempre foi curioso a respeito do (mau) funcionamento delas —, e até aprendeu umas mágicas para encantar os filhos dos amigos.

Com o tempo, aquietou suas buscas internas. Ancorou-se em sua realidade. A avó, a sábia atriz, exemplar interpretadora de antagonistas, costumava abraçá-lo demorado e dizer: “a vida oferece, você aceita e faz o melhor com o recebido, mesmo quando o melhor for o pior que possa lhe acontecer”.

Entristece um pouco ao se lembrar dela e desse mantra que ela dizia tão bonito. 

O vizinho de três casas depois da sua o contratou para pintar uma parede. Disse para que fizesse o que achasse melhor, mas queria algo bonito nela, uma imagem para a qual olhar e alimentar esperança quando a vida ficasse difícil. 

Pela primeira vez, esperou longamente pela ideia que não veio. Esvaziou-se. 

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