DAS RUÍNAS >> Carla Dias
Ninguém entendia aquela rotina. Ele saía de casa todos os dias no mesmo horário e seguia até o prédio antigo e abandonado. Durante alguns minutos, parava em frente à entrada e olhava para cima, pra lá do campanário, e sorria um “sorriso besta”, de acordo com o dono do bar mais próximo, que assistia ao ritual do outro todos os dias.
Não havia santo capaz de fazer milagre que desse conta das rachaduras que cortavam o corpo concreto do prédio da igreja, no qual, diziam os mais antigos da vila, muitos corações bateram diferente depois da missa.
No entanto, tratava-se de uma ex-igreja. Se a princípio as missas providenciavam alento aos corações, ou certo grau de proximidade com o divino, no atualmente a história era outra.
Não era dado às conversas, mas sempre foi educado com as pessoas. Sobre ele sabiam apenas ser herdeiro da casa onde moraram os trabalhadores que se dedicaram à construção da igreja, quando nem vila existia, e que vivia da herança de algum parente.
E tocava piano, uns achavam bonito, outros, nem tanto: “grande porcaria”. Às vezes, algumas pessoas se juntavam no portão da casa durante o concerto. Via-se um grupo silente, sendo arrebanhado pelo som destoante daqueles promovidos por eventuais invasões na ex-igreja para festas que não deixavam nada a dever à esbornia. A janela tomava quase toda a parede da sala. Parecia uma tela de cinema.
Não raro, entrava no prédio e ficava muito tempo por lá. Alguns decidiram espioná-lo, curiosos sobre o que fazia no lugar. Um dia, passaram horas com ele, mas de longe, escondidos. O homem ficou circulando pelo lugar, tocando paredes como se tocasse pessoas, juntando o lixo remanescente das festas e, então, parado no meio do salão, em silêncio, olhar perdido, soltou a voz: esse lugar tem tanto a dizer.
Dizer o quê? Como é que um “lugar” diz? Os espiões acharam aquilo bem idiota.
A vila acordou e as portas e janelas da casa de paredes azul desbotado estavam escancaradas. Curiosos, entraram e vasculharam tudo. Nada. O piano estava lá. Sobre ele, uma foto de um homem e um menino abraçados, em frente ao prédio da igreja ainda em construção.
Não que o divino tivesse tocado seus corações. Era uma vila de descrentes, de abandonados e blasfemadores. Mas passaram a observar com mais atenção o prédio da igreja. Notaram valor em suas estrias. Aos poucos, começaram a se reunir ali, tentando entender o que o homem via naquele lugar. Não conseguiram, mas as rodas de carteado, aos domingos, tornaram-se um sucesso. Depois veio a celebração do primeiro casamento, em dez anos, que transformou a ruína interna em um espaço perfeito para uma festa daquelas.
Nunca mais viram o homem. E apesar de falarem mal dele continuamente, sentiam falta do som do piano. Um dos moleques começou a estudar música para resolver o problema dos moradores da vila e, anos depois, tocou a mesma música que o sumido tocava todos os dias. Não conseguiram decorar o título da música, nem o nome compositor, mas o moleque tocava lindo; o piano no altar principal.



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