AMULETOS >> ANDRÉ FERRER

IMAGEM: Gemini


A luz entrou no quarto e o rapaz abriu os olhos. Sentou-se na cama, esticou as pernas e viu algo no criado-mudo. Fred pegou a “coisa” e descobriu que era áspera, feita de madeira. Um objeto estranho e jamais visto, de conteúdo desconhecido. Fred julgou pertencer ao avô. Se for dele, com certeza, guarda uma ferramenta.

Os cantos do retângulo estavam lanhados pelo uso e havia um fecho de dobradiça na tampa. Ele se levantou, abriu o fecho, espiou lá dentro.

Ainda estava escuro no quarto. Fred aproximou o objeto, semicerrou os olhos e identificou uma coleção de miudezas. Com a caixa nas mãos, ele foi até a janela e procurou o cordão, que puxou para baixo. A persiana abriu e deixou entrar o alvorecer. A luz estava fraca, mas era suficiente.

Agora, podia analisar as pequenas peças. Aproximou a caixa da luz, girou a tampa até o limite e encontrou os cacos da infância de alguém.

Carretéis, tampinhas, bolinhas de vidro e miniaturas Matchbox. Um cavalo e um índio formavam uma dupla impossível por causa da diferença de tamanho entre eles. Uma gata de louça e o seu pescoço comprido de egípcia. Fred terminou de analisar os artefatos e levou um susto porque alguém abriu a porta.

— Você viu a minha caixa?

— Esta?

— Pois é, esqueci de pegar quando fiz uns consertos por aqui. Foi ontem à tarde.

— Nem reparei. Cheguei de madrugada. Só fui ver agora.

— Também, você chega muito bêbado Fred.

— Ora! Essa fala é do meu pai.

— É brincadeira — disse o velho. — Agora, vou para a oficina.

O avô era um faz-tudo e possuía muitos equipamentos. Ele gostava de ferramentas multiuso e tinha várias delas, por isso Fred logo pensou numa furadeira quando encontrou a tal caixa sobre o criado-mudo.

— Vovô — disse ele. — Como vão as arrumações?

— Quase acabei Fred. Quando estiver tudo no lugar, eu mostro para você.

— Combinado.

Assim que o avô saíu, Fred espiou o corredor. Nem a mãe nem o pai estavam na área, o que indicava uma viagem até o banheiro livre de sermões. Depois da higiene, ele espiou o corredor, voltou para o quarto e lançou-se na cama. Fred ajeitou o travesseiro e colocou os fones de ouvido. Melhor evitar o café da manhã. Como ocupação, o celular, até a hora do almoço.

Às 11h35min, ele ganhou coragem e saíu do quarto. A primeira etapa estava tranquila, o corredor vazio encorajou-o ainda mais. Da escada, ele escutou a batucada da mãe na cozinha. Teria, o pai, chegado para o intervalo do almoço? Trabalhava perto. Quando se atrasava, se muito, chegava às 11h50min.

Fred teminou de descer a escada e escutou o conhecido farfalhar do papel. O pai estava na sala, o jornal diante do rosto. Ele tinha observado o filho naqueles primeiros dias do velho naquela casa.

— Filho.

— O quê foi?

— Vocês estão se dando bem — disse o pai. — estou feliz porque você é um sujeito difícil.

— Ora! Difícil por quê?

— Por exemplo: você já fez alguma coisa hoje?

— Fiz.

— O quê?

— Fiquei no meu quarto.

O pai riu com deboche.

— São 11h40min e tudo o quê você fez hoje foi esperar pela hora do almoço. Não se preocupe, meu príncipe. Já vamos comer.

Naquele momento, a voz da mãe ecoou na casa, invadiu o quintal e chegou até o avô, que desempenava uma porta. Logo, todos estavam em volta da mesa e houve silêncio até que a mãe perguntou como o velho se sentia na casa nova. O pai pigarreou, mexeu-se na cadeira e riu com sarcasmo. Antes que o avô pudesse responder, ele falou.

— Está muito bem e arrumou um amigo.

— Quem? — disse a mãe.

O pai curvou-se na direção de Fred e apontou com o talher. Havia uma batata frita espetada na ponta do garfo.

— Fred.

— Mas que bom — disse a mãe.

— Bom? Só espere um pouco querida — o pai respondeu. — Essa amizade vai durar pouco. Logo, o avô fica conhecendo o neto e desiste da amizade.

— Pelo contrário — disse o avô. — Sou amigo dele e continuará assim. Amanhã, aliás, terei uma novidade. Aguardem.

Depois do almoço, o pai foi trabalhar, a mãe voltou aos afazeres domésticos e o avô terminou de consertar a tal porta. Fred subiu a escada, jogou-se na cama e colocou os fones de ouvido. Seja qual for a novidade, jamais alterará a rotina desta casa.

No outro dia, Fred acordou ainda mais cedo porque a noite de quarta-feira era fraca demais. Despediu-se dos amigos às 21h30min e tratou de se refugiar no seu quarto até pegar no sono. De manhã, acordou assustado por causa de um motor, o pai cultivava o hábito de acelerar ao máximo o seu Honda Civic às 6h00min, uma espécie de sadismo.

Durante toda a manhã, o avô desapareceu. Fred pensou na oficina, muitas ferramentas para guardar e portas para desempenar, mas um esbarrão na mãe, que limpava o corredor, informou-o de que o velho tinha saído bem cedo, um verdadeiro mistério. Na hora do almoço, Fred desceu a escada e, na sala, topou com o pai, que abaixou o jornal e mostrou os olhos.

— Boa tarde sua majestade — disse.

Fred foi até a oficina e o avô já tinha voltado. Com as mãos nos ombros do neto, ele estava prestes a contar a novidade quando a voz da mãe ecoou no quintal.

— Vamos almoçar — disse o velho. — Assim, eu conto tudo na presença deles.

Os dois saíram do anexo, que era a oficina. Antes de irem para a cozinha, o avô fechou a porta mais macia do planeta. Depois, encontraram os outros membros da família já instalados na mesa. O pai riu com o canto da boca quando Fred e o avô entraram. Uma vez mais, foi a mãe que quebrou o silêncio.

— Gostaria de saber por onde o senhor andou hoje cedo.

— Visitei a empresa. Você sabe: onde trabalhei a vida toda.

— Que legal — fez a mãe. — Deve ter sido emocionante.

— Foi mais proveitoso do que emocionante.

O pai levantou um talher e sorriu. Com a ajuda do garfo, indicava o teto com o peito de frango.

— Proveitoso? — perguntou. — Então, deve ter algo a ver com aquela novidade. Certo?

— Sim — o avô confirmou.

— Então,diga logo.

— Bem, eu consegui uma entrevista de emprego.

— Para você?

— Não. Para o Fred.

— Conta outra.

— É verdade.

— Então, é um verdadeiro desperdício — o pai escarneceu. — Mas, caso dê certo, suspenderei o corte de gastos planejado aqui para a casa.

Depois da refeição, Fred foi para o seu refúgio, olhou ao redor e teve a impressão de que algo terminava. O quadro cheio de entradas de velhos shows, tão desejadas e já picotadas, a coleção de latas de cerveja, os troféus da caça noturna. Fred logo pensou que toda uma era chegava ao fim.

Naquela noite, ele também ficou em casa, rejeitou convites, mandou embora um amigo insistente, desligou o telefone. O sono foi tumultuado, ele acordou diversas vezes e refletiu sobre aquela mudança radical na sua vida. Quando a luz entrou no quarto, Fred já estava acordado e falaria com o avô assim que ecutasse barulho na oficina, o que só acontecia depois do estrondo do Honda Civic.

Fred aguardou enquanto ficava cada vez mais agitado e dividido, a tal surpresa era, mesmo, difícil porque o avô sempre se mostrara um amigo. Aquilo encheu Fred de angústia, precisava ser sincero com o velho e decidir se anunciava que faltaria à entrevista. O rapaz resolveu ser honesto e tormou o rumo da oficina onde encontrou o avô sentado, a caixa no colo.

— Animado?

— Bem, vovô...

— Eu sei — atalhou o velho. — Tudo bem. Você é que decide e deixe as desculpas para lá.

— Tudo bem mesmo?

— Sim.

— A sua caixa é muito bonita na claridade.

— Às vezes, eu acho que ela muda de aparência.

— Uma caixa mágica. Bobagem.

— Bem, ela me ajuda a viver — disse o velho com seriedade no rosto. — Quem sabe, um dia você encontrará a sua?

— Tenho uma coleção de latas importadas.

— De cerveja.

— Sim.

— Pode ser que funcione, mas 99% é coisa sua. Devemos ter 1% de sorte e 99% de força.

Fred colocou a mão no queixo e acenou para o avô. De repente, sentiu-se um covarde, o pior sentimento da sua vida. O avô despertara aquilo nele enquanto o pai só conseguia provocar revolta, o que mais emperrava a sua vida do que ajudava. O rapaz passou pela cozinha, bebeu um copo de água e decidiu ir à entrevista.

À caminho da empresa onde o avô trabalhou por anos, Fred chegou a outra conclusão: pela primeira vez na vida, ele considerava mudar de comportamento e queria mostrar ao pai que era capaz de fazer um esforço e aguentar a disciplina. Era, sim, um sujeito difícil, mas apenas na superfície.

Fred desceu do ônibus e pensou que tinha preparo, mas aquilo também era um salto no escuro. Caminhou na direção da torre, chegou ao suntuoso prédio e teve certeza de que uma etapa da sua vida estava no fim. Cheio de coragem, pegou na alça da porta e, antes de empurrar, pensou naquilo como um dado arremessado sobre uma mesa.

Fred tomou o elevador e chegou à recepção da empresa, que ficava no terceiro andar. Uma secretária levantou a cabeça e sorriu atrás de um monitor.

— Como eu posso ajudar?

— O meu nome é Fred. Vim para a entrevista.

— Entrevista?

— Escriturário.

— Ah! Ninguém te avisou?

— O quê? Mudança de horário? Data?

— Não. Sinto muito — disse a mulher. — É que a diretoria decidiu cancelar a seleção para escriturário.

— Por quê?

— Corte de gastos.


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