O COBRADOR DE SOLEDADE >> ANDRÉ FERRER


IMAGEM: Gemini

Trabalha na linha Soledade-Flores da Cunha. O uniforme cinza aperta o pescoço. O ônibus no asfalto quente. Ele estica o braço. Fura. Devolve o bilhete. O metal deixa um cheiro de Singer nos dedos. O relógio vai ao ritmo do cansaço.

Os passageiros entram. Rostos mudos. Olhos fixos no nada. Ele clica. O som do ferro é seco. Um estalo por corpo acomodado, que puxa as cortinas porque o sol bate, lá fora, no vidro e queima o braço do incauto. Senta-se. Conta cliques vazios enquanto observa um banhado. Divide o mundo, aquele charco, e quem sobe e mostra o bilhete e se acomoda; e quem desce quando é a hora e desaparece para, talvez, nunca mais; tudo divide o tempo corrosivo. A estrada é o próprio cetim negro do destino com inscrições em amarelo.

A noite chega com ele à rodoviária. Ele desce do veículo. O silêncio do pátio é pior que o barulho do motor. Ele olha as mãos sensíveis e untadas. O jantar é frio. A cama, estreita. O sonho tem cor de fumaça. Amanhã, o ônibus partirá às seis. A máquina perfuradora. Os estalos. A repetição que inutilizará, uma vez mais, o tempo para sempre.

Lá pelas tantas, o cansaço ainda é um peso no peito. Não há flores no destino (a não ser a parte desagradável das flores). O asfalto, apenas, e o estalo do metal, seu companheiro de vida e espera. O que dá sentido e ânimo aos dedos é aquilo. Move-se. Abre a gaveta do criado-mudo. O aço é frio e pesado. Ele sente o cheiro do óleo da peça que emula o ataque do trabalho - sim, é o próprio clique diário, só que de um modo mais eloquente e definitivo. O mundo, lá fora continua sem futuro antes e depois do charco. Há horas, amanheceu. O ônibus chama no pátio. Um motorista ruivo, que bate no volante e no Seiko para avisar o fiscal.

Ele não vai. Ele para à beira do colchão. Sem alívio, mas também sem bilhetes, bagagem ou queixas de gente estranha. O cansaço encontra o descanso e o metal, a pele suada. Um pequeno buraco na têmpora e, na terra (antes ou depois do banhado), um buraco sob medida.

Comentários

Albir disse…
A repetição, o buraco no ticket, o buraco na testa, tão próximos, necessários.
O próximo, por favor!

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