AS MÃOS DO PADRE >> ALLYNE FIORENTINO

 


Paulo era o nome dele. Como em uma pintura, tinha a pele bastante alva, os olhos azuis-claros brilhantes, que certamente foram decisivos para sua promoção a padre de igreja catedral de cidade do interior. No dia a dia, fora das missas, vestia-se elegantemente com alfaiataria, o tom da voz era suave, mas essas são lembranças fugidias, meio esfumadas pelo tempo, exceto as mãos, delas me lembro bem, como se mãos de padre sempre fossem assim: limpas, extremamente alvas, unhas impecavelmente cortadas e lixadas, dedos simétricos e pele macia. Parece mesmo coisa dos anjos. Mas de anjo frequentador da catequese a demônio quirofílico estamos a apenas um palmo de distância, literalmente. 

Todos os domingos éramos obrigados a ir à missa, não por tradição interiorana, mas, sim, porque durante aquele ano, receberia a primeira comunhão das mãos angelicais do Padre Paulo. Após cada missa, era necessário que um dos responsáveis pela igreja assinasse uma espécie de carteirinha, o que comprovava que o aspirante a bom católico participou de todas as missas dominicais por uma no, embora isso fosse de encontro à boa-fé cristã, que nos clama à virtude de não necessitar de provas de fé. Por isso, sua canetada era quase um alívio quase sexual: “Estamos chegando lá, padre! Só mais um pouquinho e gozaremos juntos essa comunhão!”. E ele assinava, com gestos preciso, porém levíssimos: “Padre Paulo”, mais uma vez. Era um verdadeiro deleite pra mim ver quase todas as lacunas preenchidas pela santa caligrafia dele.  

Aos sábados aconteciam as aulas de religião, frequentadas majoritariamente por mocinhas da alta sociedade, o que rendia conversas muito edificantes sobre vestidos e clubes, entremeadas pelas minhas perguntas desconfortáveis às catequistas e cânticos que, às vezes, entoávamos. A casa do padre ficava era contígua à essa sala de estudos e, certa vez, ele confessou que, pela manhã, quando tomava banho, podia ouvir nossas vozes cantando e que isso o fazia feliz. Talvez fosse mais do que isso, talvez ele ouvisse nossas vozes atravessando a sua janela enquanto se banhava, passando lentamente suas mãos esculpidas em mármore sobre a pele dócil, descendo pelo peito, desviando do pingente de crucifixo para ganhar seu abdômen, suas coxas até chegar em seus pés, purificando-se com água e cantos desafinados de meninas de tenra idade.

No dia seguinte, toda a turma se encontrava novamente para a missa. E foi assim durante todos os domingos daquele ano, eu não aceitava que nenhum outro responsável assinasse minha liberdade, tinha de ser o tal padre. Era uma confusão ao final de cada missa de domingo, com dezenas de alunos esperando para assinar a tal carteirinha, mas eu furava a fila, evitava as catequistas, empurrava as patricinhas em meio a comentários como “você já escolheu seu vestido?” somente para ficar frente a frente com ele. Caso aquela carteirinha não estivesse completa em todas as suas infindáveis linhas, não haveria motivo para ter um vestido branco e eu ficaria decepcionada pois, assim como o padre, eu adorava a elegância. Aquelas mãos alvas de santo seriam as únicas capazes de fechar, rente à pele quente das minhas costas, cada botão do meu vestido branco especialmente tecido para a comunhão.

Metaforicamente, claro! Não se escandalizem! Ele nunca encostou as mãos em mim. Sabia da maciez das suas mãos apenas nos poucos momentos em que eu as beijava, encostando meu lábios juvenis na sua pele em sinal de respeito. Felizmente as obsessões são assuntos para adultos e eu era uma criança gozando da inocência. Minha inocência me levava a recônditos inexplorados pelas outras, como São Tomé, investigando as minúcias da religião, interpelando com veemência as catequistas que me davam respostas evasivas; e as minúcias do padre, em cada curva de seus dedinhos lascivamente angelicais. Eu precisava ver para crer.

E Deus não nega aos pequeninos seus pedidos inocentes, portanto, eis que, em um domingo, com a missa cheia da alta sociedade alva e santa, entra pela porta uma senhora muito simples, meio maltrapilha e ao lado dela estava o filho  ele caminhava com dificuldade e aparentava ter problemas mentais, pois não parava de dizer coisas desconexas  e pararam bem em frente ao altar. A posição deles me permitia observá-los com muita atenção, pois eu estava posicionada bem atrás, na primeira fileira de cadeiras. O padre também os viu logo que chegaram, destoando do restante dos fieis, embora tenha se limitado a dar-lhes uma olhada de canto de olho apenas. Foi a primeira vez que algo mais interessante que as mãos do padre rompiam com o tédio de toda santa mesmice de missa. 

 No momento da consagração da hóstia, o padre e suas belas mãos levantam a taça dourada, o sol que vinha de uma das janelas, reflete no objeto metálico e envia um raio na direção em que estávamos eu e a senhora maltrapilha com o filho. O raio entra direto nas minhas retinas. Por um momento eu estou cega, por um momento eu sou Saulo, e levo as minhas mãos ao rosto. Em poucos segundos a minha a visão volta e, ao poder enxergar novamente, vejo que o filho daquela senhora está no chão, contorcendo-se sem parar, parecia estar tendo uma convulsão. Eu olho imediatamente para o padre, esperando vê-lo em ação: suas mãos alvas fazem novamente um gesto delicado e ele, gentilmente, pede que o pobre rapaz seja retirado da igreja “para tomar um ar lá fora. É melhor pra ele...”. E segue elegantemente com sua missa, agora sem mácula estética. Naquele dia o Padre Paulo me ensinou mais do que durante todo o ano.

 A última vez que vi suas mãos tão de perto foi no dia da confissão, um dia antes de receber a primeira comunhão. As catequistas explicaram que faríamos aquilo um a um, fora do confessionário para não ser uma coisa tão rígida e amedrontadora. Era apenas uma conversa com o padre, elas afirmavam a todo momento. Minhas colegas iam, ficavam alguns minutos e voltavam mais ou menos com as mesmas penitências: rezar 10 Pai Nossos e 10 Ave Marias ou 15 Pai Nossos e 10 Credos. Quando chegou minha vez, sentei-me ao lado do padre pensando que diabos haveria para confessar, mas meu único pecado estava claro e ele consumia meus pensamentos. Isso merecia ser contado a ele. Ele repousava as mãos sobre as coxas, cobertas pela batina branca. Eu as olhava com a cabeça baixa enquanto pensava em minha confissão.

 — Então, minha filha, confesse-me seus pecados.

 — Padre, eu só tenho um pecado que vale a pena contar.

 — Estou aqui para ouvi-la.

Eu continuava de cabeça baixa, olhando as mãos do padre, que agora estavam cruzadas sobre as pernas.

 — Sabe, padre Paulo, suas mãos são muito bonitas. Tenho uma obsessão por elas, me pego pensando em como essas mãos gesticulam no dia a dia, nas bíblias que ela acaricia, nas páginas de bordas douradas que são levemente tocadas pelas pontas dos seus dedos, nos movimentos de vai-vém que deve fazer ao buscar um versículo perdido em um Salmo... Talvez isso seja alguma coisa muito específica minha. Não sei dizer. A verdade é que cada assinatura sua na minha carteirinha de missas era um deleite pra mim. E agora acabou. Felizmente.

— É apenas esse o seu pecado, minha filha?

 — Pecado? Que pecado? Não, não, padre... Desculpe-me, desviei do assunto... Deixe-me retomar: meu único pecado é o mesmo que o seu. Estive buscando o ano todo o momento em que veria com meus próprios olhos. Fiquei feliz em descobrir naquela missa. Aquela em que o rapaz pobre e epilético teve um ataque e o senhor ordenou que o tirassem da igreja? O senhor se lembra? Pois bem. Notei que somos iguais. Tenho certeza que saberá me punir com a mesma severidade com que se puniria.

Ele olhou-me com um olhar de surpresa e incredulidade, as bochechas alvas agora em chamas, se tivesse um chicote nas mãos teria me açoitado pela petulância, mas ele respirou fundo, se recompôs, fez um gesto levíssimo com as mãos e me disse:            

— Cinco.

 — O quê, padre? Não entendi.

— Apenas cinco Ave Marias. Vá, vá e reze. E que Deus te perdoe. 

— Obrigada, Padre Paulo. Ao senhor também.     

_____________________________

 Imagem: Freepik.

 


Comentários

Postagens mais visitadas