UM MILAGRE DE NATAL DO VELHO PADRE E DO GATO PRETO PARA ALGUÉM NADA TRADICIONAL >> Zoraya Cesar
Caos. Pessoas de todos os tamanhos, cores e idades corriam de lá para cá como se estivessem perdidas (num certo senso, estavam mesmo). Todas, no entanto, compartilhavam da mesma ansiedade e da mesma pressa. Um calor desmesurado vinha do sol, batia no asfalto e subia, em ponto de cozimento.
Ela não estava acostumada com aquilo. Vinha de terras frias e ar gelado que cortava os ossos e resfriava os ânimos. De montanhas altas, mais altas que aqueles prédios horrendos. Terras de poucas gentes, nas quais todos se conheciam pelo nome ou pela fama. E onde seres como ela costumavam ser bem tratados.
Estava atarantada e com medo, a moça pequenina de pele clara e cabelos cor de mirtilo ao sol. Ninguém notava, mas seus olhos tinham tons cambiantes de cascalho de rio e águas verdes. Parecia uma fada.
E era.
O que fazia uma fada no centro de uma cidade grande, tão longe de sua terra? Desesperava-se.
Tudo o que ela queria era voltar pra casa |
E assim passara o dia, com calor,
sede, fome, medo. Não encontrara uma alma gentil que lhe ajudasse a recuperar
as forças ou a esperança. A noite chegara há muito, e a fada continuava andando
a esmo, cada vez mais cansada, desesperançada, faminta. A rua ficou vazia, as
vozes foram se afastando, as luzes se apagando.
Assim que a lua aparecesse, decidiu, pediria para ser derretida. Não queria viver assim, sem lar, naquele lugar desalmado, sem musgos, árvores ou...
Árvores?
No final da rua, perto de uma encruzilhada, sua atenção foi atraída pelas luzinhas brilhantes e pisca-piscantes de uma grande árvore. Que bonita! Oh, artificial!, decepcionou-se. Mas era tão linda! Toda enfeitada de bolas que lembravam maçãs, ah, que vontade de comer uma maçã! E outras, douradas como o pôr do sol em Inisheer. E, no topo, uma enorme estrela prateada, prateada como os cabelos da avozinha que se fora.
Viu que, aos pés da árvore, havia algumas
imagens. Uma mulher jovem, de olhar meigo, um homem sério, pastores (sorriu
levemente, pastores costumavam deixar oferendas!), alguns animais (cabras! Ela amava
cabras, eram sempre tão alegres e brincalhonas). E, também, um berço vazio. A fada
ficou triste.
Coitados! O que teria acontecido à criança?
A árvore não era real, mas era tão linda! |
Era uma fada nova, ainda não conhecia o mundo e temia as tradições de outros povos. Mas desejou que a criança voltasse para seu berço sã e salva. Se ela, fada, estivesse no seu habitat, daria conta disso, ora se daria!
Mas, já que não estava, fez um pedido fervoroso à estrela da árvore: que ela e a criança encontrassem seu lar.
Mal terminara, ouviu um miado, seguido por um educado ‘boa noite, senhorita’. Ela se levantou num susto, o pavor tomando conta de todo seu pequeno ser.
Era um homem alto, corpulento, de capa vermelha e cartola preta. Em seus braços, um enorme gato preto de pupilas amarelas.
Por um instante, a fada pensou que fossem matá-la em algum ritual sangrento. Nunca vira um homem daqueles e não era afeita a gatos nem às suas companheiras usuais. Mas a vibração de ambos era tão benéfica, que parte de seu medo arrefeceu. E, como qualquer destino era melhor que nenhum destino, aceitando o convite, seguiu-os.
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O salão era uma miscelânea de vozes, risos, ruflares de asas, sinos (sinos! Taí uma coisa que a fada gostava muito). E, paz. E amor. O gato foi em direção a um homem velho, bem velho, mas muito ereto, que emanava uma força ancestral quase sobrenatural. Aliás, percebeu a fada assim que entrou, todos ali eram por demais poderosos. E eram tantos! Viu seres de diversas tradições, algumas que ela nem ouvira falar, como a do homem de capa que a trouxera ali (Seu Exu Encruzilhada, soube depois, o que abre caminhos).
O Velho Padre aproximou-se, sorriu, deu-lhe as boas-vindas. O enorme Gato Preto ronronava, brincando de passar por entre suas pernas.
Mince pie, iguaria irlandesa |
Logo logo, uma mulher, Brigida de Kildare, a seu dispor, ofereceu-lhe um prato de mince pies, frutas e cerveja. E, falando sua língua, murmurou ‘não se preocupe. Você ficará bem. Vou te levar de volta ao lar”.
Comida. Calor. Abrigo. Almas gentis. Esperança. Ficou ali a observar todas aquelas pessoas e seres de outras tradições, todo o amor e alegria que deles emanavam. Só restava saber que festa era aquela.
Foi então que viu a mulher, e diversos seres estranhos, inclusive aquele que a salvara, brincando com um menino. Ah, ela sorriu, então a criança voltou pra casa! Que felicidade! Seus pedidos foram atendidos, afinal. Seu corpo começou a resplandecer e a soltar faíscas coloridas por todo o salão, para grande alegria de todos. A criança gargalhava, tentando pegá-las. Timidamente, a fada se aproximou, a fim de saber o que tinha aquela família de tão especial. Estava na hora de perder os preconceitos e conhecer outras pessoas e entidades.
Pacientemente, o Gato Preto ouvia o Velho Padre conversar com São Patrício e dizer, mais uma vez, que festas de aniversário eram suas preferidas e o quanto amava os pequenos milagres de Natal.
Foi se aninhar no colo de Nossa Senhora, sua preferida desde sempre, filosofando que, realmente, é no Amor que todas as tradições se encontram.
As aventuras do Velho Padre e do Gato Preto ao longo dos anos
O passado visita o Natal do Velho Padre e do Gato Preto - 2023
Comentários
Tempo de trânsito confuso, pois as hordas de fiéis da seita do consumo dirigem-se fervorosamente aos templos do comércio, para preencher suas almas com o que puderem comprar de alento.
Tempo de excessos etílicos e gastronômicos.
Tempo de muito calor, de muito cansaço, de euforia confundida com felicidade.
Mas, para amenizar um pouco desse frisson, também é tempo de mais um texto da Zoraya sobre o Velho Padre e de seu gato preto.
Obrigado por nos trazer mais uma vez esses personagens admiráveis e todo o seu encantador universo ficcional!