MÚSICAS DE UM MUNDO PERDIDO >> JANDER MINESSO

 

Era 1992. Numa tarde qualquer, meu irmão do meio chegou em casa com um disco novo debaixo do braço. A capa trazia um olho azul esquisito sobre um fundo vermelho cheio de rabiscos. A única coisa legível era uma palavra no canto superior direito: wish. Assim mesmo, só com minúsculas.

– Vem ouvir, maninho. É o novo do The Cure.

Mesmo com apenas dez anos, eu conhecia bem a banda. Nosso irmão mais velho tinha algumas músicas gravadas em uma fita cassete e, sendo uma criança estranha, eu já tinha tentado traduzir Inbetween days munido apenas de um dicionário e boa vontade. Apesar do fracasso ribombante, me afeiçoei aos ingleses de cabelo engraçado. Só que nada tinha preparado meu coração para o que aconteceria naquele momento.

Assim que a agulha tocou o vinil, o chiado característico da mídia deu lugar a um ronco que parecia saído da garganta do capeta. Mas aquele era um capeta muito sedutor, não um monstro horroroso. O rugido grave, quente, ardido e tesudo se entranhou em cada vão da minha mente. Fiquei um bom tempo boquiaberto até conseguir comentar:

– Que guitarra legal.

– Isso é um baixo, Jan.

Foi uma revelação que mudou minha vida. Os primeiros compassos de Open fundaram a base do meu gosto musical e boa parte do meu caráter. Por causa daquele instante, anos depois eu decidi que queria aprender contrabaixo. Também comecei a ter cadernos espalhados pela casa, cheios de letras de canções que nunca viraram nada, mas foram grandes exercícios de escrita. Além disso, a música me apresentou algumas das melhores pessoas que já conheci. E mais de três décadas depois, ainda é comum eu colocar algum som do Cure para tocar e ficar impressionado com as coisas que Simon Gallup, Robert Smith e companhia conseguiram cometer de 1980 para cá.

Apesar disso e ao menos para o meu gosto, o passado recente não tinha sido o melhor momento da banda. Os dois últimos álbuns não me impressionaram. Tudo parecia uma mistura dos mesmos quatro acordes com riffs requentados de tempos idos. Sem falar que eles não lançavam material inédito há mais de uma década, apesar das promessas.

Seria o maior dos clichês fazer uma virada no texto agora, dizendo que o Cure deu a volta por cima e lançou um disco maravilhoso. E é isso mesmo que vou fazer agora: incensar até não poder mais o Songs of a lost world.

A humanidade não está no seu momento mais louvável. Para a nossa sorte, Robert Smith sempre teve uma antena muito boa para captar o espírito do tempo e traduzi-lo em músicas sensacionais. Claro que o cara também fez grandes pérolas pop do calibre de Friday I'm in love, mas o disco novo não vai nessa direção. Ali, quase tudo é cinza e denso. O principal (único?) compositor da banda perdeu muitas pessoas queridas nos últimos anos; ele está chegando perto dos setenta; o mundo está indo para o saco a passos largos; e boa parte das pessoas ainda acredita que fechar os olhos e repetir para si que “está tudo bem” vai mudar alguma coisa. Não tem como sair algo fofo dessa mistura.

Alone, a faixa que abre o disco, me deixou com um buraco no peito desde a primeira audição (tem até um texto aqui no Crônica inspirado por uma audição em loop dessa música). Depois de três minutos e lá vai fumaça de teclados gigantescos e linhas de baixo sujas, cheias de espaço, a primeira frase que sai da boca do senhor Robert é: “Esse é o fim de cada música que nós cantamos.” Melodramático para alguns, mas o mal da democracia é que esses alguns têm o direito de estarem errados. O resto da música é um hino contemplativo sobre perdas e a solidão última da existência. Mas não há desespero aqui; tudo soa como dolorosa sabedoria.

A inevitabilidade da vida e suas facetas pouco agradáveis está em cada canto do disco. No momento mais pop possível, A fragile thing, nosso amigo Bob canta “esse amor é meu tudo, mas não há nada que você possa fazer para mudar o fim.” Vai tomar no cu.

Acho que o coração do álbum está na sexta faixa, I can never say goodbye. Relembrando a maravilhosa The same deep water as you, de 1989, esta belezinha também começa com chuvas e trovoadas. Depois do breve preâmbulo, entra um piano que parece que vai quebrar de tão frágil, logo acompanhado por outra linha de baixo fudida do senhor Gallup. E, no meio desse arranjo cheio de vazios, Robert canta a morte do irmão. Se você já perdeu alguém importante, permita-se a catarse de um chorar feio num quarto escuro ao som dessa música. Vai te fazer bem.

São oito canções ao todo, num disco que não chega aos cinquenta minutos. E talvez esteja cego pelo meu afeto, mas não vejo sobra alguma: cada canção é única, diferente, familiar e nova ao mesmo tempo. Algumas, como Warsong, parecem que vão desmontar de tão soltas. Outras demoram um pouco mais para digerir, mas logo viram favoritas. Foi o que aconteceu com And nothing is forever, música que Smith escreveu como compensação para uma promessa não cumprida. E ainda temos Drone:Nodrone, um paredão de barulhos conduzido por um groove tão simples quanto um soco na cara. Bom pra caralho.

Perdoem o excesso de palavrões, mas só eles puderam expressar o que senti nas muitas audições que fiz do disco. Estou quase envergonhado por essa crítica nada crítica, mas no fundo fiquei feliz ao reencontrar minha banda preferida. Foi um alento perceber que, mesmo que algumas coisas sejam inevitáveis, artistas com décadas de estrada ainda conseguem fazer música honesta e capaz de emocionar. Num mundo cheio de singles de três minutos, produzidos com a esterilidade de um hospital e para serem engolidos sem mastigar, Songs of a lost world tem um abandono rebelde que só a idade pode trazer. Mas claro que essa é apenas a opinião de um quarentão com alma adolescente.

Imagem: Pixabay
Para ler outros textos do autor, clique aqui.

Comentários

Soraya Jordão disse…
"A humanidade não está no seu momento mais louvável." Sinto isso todos os dias. Que bom que temos a música.
Alfonsina disse…
Adorei como você começou com um souvenir de infância e foi trazendo a gente para a atualidade, nos fazendo pensar na nossa infância, descobertas musicais, e depois nossas dores e perdas. Concordo com você, se formos honestos, não dá para produzir nada fofo… chegando em casa vou escutar The Cure!
Zoraya Cesar disse…
Jander, isso é uma crônica dos Tempos. Mexeu demais comigo, esses artistas que tinham, e ainda têm, algo a dizer, realmente formaram nosso caráter, nossa personalidade, nossa maneira de ver e estar no mundo. Quem nunca chorou ouvindo uma baladela do tipo please don't go (kc and sunshine band), nem sorri qd ouve friday I'm in love, nem chora de se arrebentar qd toca 'naquela mesa tá faltando ele', realmente, nao tem humanidade. E é sempre um SUSTO qd vemos q nossos ídolos envelheceram (vc JURA q David Gilmour tá com 78??? Robert Smith 65??) em idade, mas não em capacidade de botar nosso mundo de cabeça pra baixo e nos levar por emoções q nós, a seco, não temos condições de encarar. MUITO OBRIGADA.
Albir disse…
Você me convenceu, vou procurar o álbum. Ando meio desanimado, me refugiando em antiguidades musicais.
Mário Baggio disse…
Vixe, pegou fundo! Tenho coisa parecida com alguns discos (todos antigos). "Fina estampa ao vivo", do Caetano, é um deles. Fico marejado sempre que ouço "Lamento borincano".

Postagens mais visitadas