O DIA EM QUE UMA MENININHA MATOU O PAPAI NOEL >>> Nádia Coldebella


Então chegou o dia.

Papai. Mamãe. Titio. Titia. Primo. Irmã da vovó que também era tia. Vovô. Vovó. Madrinha. O mundo todo. Ela. Música, conversa, comida. E mais tarde o Papai Noel. 

Aninha achou que tinha muita gente, gente muito agitada. 


A professora tinha explicado que o Natal era tempo de expressar amor. Ela ouviu atentamente e mesmo não conhecendo aquela gente, abraçou todo mundo.

Aninha estava animada para ganhar a boneca. Tinha se comportado direitinho. Contou para a madrinha, que não prestou atenção porque escutava o papai. Ele explicava baixinho porque o primo não tinha vindo. Ele não aguentou, disse o pai, e aí deu um tiro na cabeça. 

Um tiro na cabeça devia machucar bastante... So it's Christmas, the christian holiday

Aninha sentiu um nó na garganta, mas não entendeu porquê. 


(Então é Natal, a festa cristã. Do velho e do novo, do amor como um todo...)

A professora explicou que o Natal existia para comemorar o aniversário de Jesus e que esse homem havia mudado o mundo, porque ensinou a amar e a perdoar. Aninha ouviu tudo atentamente e perdoou a Sofia que pegou sua borracha sem pedir e pediu perdão para a Nina por pegar o lápis escondido.

Ela foi contente falar isso pro tio, mas o ouviu dizendo que bandido bom é bandido morto. Ele achava que era bom o bandido levar tiro. Mas o primo também tinha se dado um tiro. 

O nó na garganta aumentou. 


(Então Bom Natal e Ano Novo também. Que seja feliz quem souber o que é o bem!)

A professora disse que o presente não era importante, era o espirito natalino que importava. Aninha ouviu tudo com muita atenção e foi gentil e feliz com todo mundo.

E então o Papai Noel chegou, um cara estranho, parecido com o vovô. Era a primeira vez que Aninha percebia que aquela barba não era de verdade. Ela sentiu um pouco de medo quando ele a pegou no colo e deu um abraço, mas quando entregou a bonequinha, foi ela quem o abraçou. 

Então a campainha da casa tocou.


(Então é Natal, pro enfermo e pro são. Pro rico e pro pobre, num só coração...)

Jesus acolheu a todos, a professora disse. E Aninha tinha ouvido tudo atentamente.

Quando o homem maltrapilho e fedido pediu comida, os tios viraram o rosto e Aninha viu nojo em seus olhos. A tia velha apontou, escandalizada, para a menininha que estava junto. Um bom jeito de se aproveitar da boa vontade das pessoas, disse a vovó, com a boca semi cerrada de raiva. Mamãe e papai concordaram.

Aninha não achou nada. Viu os grandes olhos tristes da criança olhando pra ela. Pra você, pode ficar, disse Aninha, levantando do colo do Papai Noel e entregando a bonequinha para a criança. 

O Papai Noel a segurou pelo braço e tirou a barba. Era mesmo o vovô. Ele estava muito bravo. Vai embora, disse para o homem, que abaixou a cabeça e puxou a menina pelas mãos.

O nó na garganta de Aninha explodiu.

A bonequinha ficou jogada na soleira da porta.  


(Harehama, há quem ama...)

Aninha chorou muito naquela noite. 

Ela não quis mais a boneca. 

Ela decidiu parar de acreditar em Papai Noel. Não por causa do vovô - ela sabia que ele era só um ajudante - mas porque o Papai Noel tinha esquecido de uma criança. 

E como o primo que deu um tiro na cabeça, Aninha fechou os olhos. E então, naquele dia, num cantinho de sua mente, uma menininha deu um tiro no Papai Noel.


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Está crônica faz parte do projeto Crônicas de um ontem e foi publicado anteriormente em 21 de dezembro de 2019.

Comentários

Zoraya Cesar disse…
Hohoho, Nossa Countess, mais uma vez, prova que cravar uma faca em nosso coração com sutileza é sua especialidade. Que triste q nós, adultos, damos a arma para as crianças matarem papai noel e a esperança que ele, indiretamente, traz.
Mário Baggio disse…
O Natal, pra mim, tem dessas coisas. Há muito tempo não comemoro a festa, ou melhor, comemoro sozinho, em casa, em conversa com o aniversariante.
Francisco disse…
Li com um nó no estômago. Essa "caridade" seletiva é o suprassumo do egoísmo e fica ainda mais evidente nessa data.
Jander Minesso disse…
Um suquinho de amor ao próximo, bem tirado. Baita texto, Nádia.
Soraya Jordão disse…
adorei, Nadia! Muito bem construída.
Albir disse…
Eu que já tinha acusado o golpe lá em 2019, levei outro soco.
Muito bom, Nádia!

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