TUDO O QUÊ? >> Carla Dias


Folheia uma revista desinteressante, raramente se atém a algum artigo. Especializou-se em ler o que não importa para dissipar nervosismo. Está mais perto do que nunca do dia em que tudo irá mudar.

Desde sempre, espera por este momento, sua vida foi moldada por tal espera. Mudança feito esta é de fazer história de pessoa melhorar, desejo compartilhado por todos. E agora ele está ali, na fila, pronto para receber o que merece.

Desvia o olhar da revista e observa uma senhora negociar com um homem, quatro pessoas à frente. A espera cansa, ele sabe, está na fila desde sempre. Muitos desistem. Mas também há o improviso dos incapazes de permanecer à espera, e para eles, os esperadores são uma saída, mas este é um recurso muito dispendioso. Tais profissionais estão em ascensão, mas acontece de custarem mais do que dinheiro, por colocarem em risco a legitimidade da conquista.    

O esperador entrega a senha para a senhora sob o olhar de invejosos e desapontados. Ela não se abala, pega o pequeno pedaço de papel, alinha-se, o olhar lançado a um ponto qualquer que não remeta ao questionamento silencioso daqueles que, há uma vida, esperam por um lugar feito aquele.

Sabe que ainda terá de folhear outras revistas, mas mantém o foco no que conquistará. Claro que, diante do tempo, e das variáveis que ele oferece, e de acordo com a sobrinha de dez anos de idade, precisará trocar a revista em papel por um leitor digital.

A mudança tão aguardada, resultado da espera à qual se dedica completamente, reescreverá sua história. Quando decidiu entrar na fila de espera, a fim de conquistar exatamente o que desejava, ela se tornou seu norte. Falta pouco para ser o primeiro dela, receber o que merece, e isso o assusta e traz esperança.

Acontece de nem mesmo os esperadores facilitarem para os incapazes de dedicarem sua vida ao que virá. A mulher se inquieta, logo mostra que não nasceu para aquilo, joga a senha para o alto, sai correndo. Os fugidores são incapazes de dedicar sua vida à espera pelo melhor, preferem os riscos. 

O que virá mudará tudo para ele. Ao pensar nisso, além da euforia provocada pela ideia de mudança, vem o questionamento: tudo o quê?

Deixa o medo de lado, folheia a revista. A sobrinha vai dar um tablet de presente para ele, será mais moderno este esperar.

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“Prisão, flores e luar”, meu mais recente romance, está à venda no editorasinete.com.br/prisao-flores-e-luar.

carladias.com.br

Comentários

Zoraya Cesar disse…
Não adianta disfarçar, Princesa das Palavras, com esse texto pretensamente fofo e esperançoso. Essa espera é dos que nunca alcançam, pq é uma espera estática e sem função. Feliz é a mulher que jogou a senha para o alto e partiu, espero, sem olhar para trás. Muito sutil, vc, D. Carla Dias.
Albir disse…
Só resta trocar a revista pelo tablet, a espera é sempre a mesma. E por quê, mesmo?

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