RELÓGIO DE PONTEIRO >> JANDER MINESSO

 

Numa faxina de fim de ano, encontrei o relógio que usava na minha adolescência e juventude: um Champion analógico, daqueles que dava pra trocar a pulseira. Eu tinha a vermelha e a preta, mas a primeira se perdeu no tempo. Apesar dos anos, ele continuava funcionando.

Fiquei encarando os ponteiros por um bom tempo, parte de mim querendo que eles corressem ao contrário. Se aquele relógio pudesse me levar três dias e alguns segundos para trás, sem dúvida eu seguiria na faixa da esquerda — uma pequena atitude que me pouparia tempo e dinheiro, além de evitar a frustração de me envolver em dois acidentes no mesmo ano.

Já se eu pudesse voltar duas décadas, teria feito faculdade de Música. Como diz o ditado: fudido por fudido, truco. Uma pena eu não pensar assim na juventude. Depois de largar um curso tradicional numa faculdade consagrada, o medo de decepcionar ainda mais meus pais me empurrou para o Audiovisual, carreira onde minha habilidade em escrever poderia ao menos virar algum dinheiro. Foi uma escolha acertada, que me trouxe grandes amigos, ótimas histórias e um bom cachê. Mas é diferente de Música. Talvez, se eu tivesse insistido, a essa altura já teria emplacado uma nova Evidências. Vai saber.

Se o tal relógio andasse ao contrário, eu tentaria convencer meu pai a largar o cigarro alguns anos antes; e talvez esses anos extras fizessem a diferença. Compraria três potes de sorvete gourmet para minha mãe naquela sobremesa de domingo, ao invés de dois. Aproveitaria a viagem até a Itália para conhecer mais um monte de outros lugares. Pediria o telefone da menina que conheci no show do Interpol. E no último dia de aula da pré-escola, ainda teria dado um soco no Alex quando ele me empurrou no tanque de areia.

Mas supondo que eu só pudesse voltar no tempo uma vez, aí a escolha seria fácil. Eu iria até a casa da vizinha que fazia os melhores doces do bairro. Chegando na cozinha, miraria no fundo dos olhos daquela criança de quatro anos que acabara de recusar um pedação de bolo de chocolate recém-saído do forno e diria:

— Aceita o bolo, moleque. Você sabe que quer. Senão, daqui a uns anos você vai ficar olhando para um relógio velho desejando o impossível.

Mas o relógio, claro, continua andando para a frente. E não faço ideia de onde a pulseira vermelha foi parar.

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Imagem: Pixabay

Comentários

Anônimo disse…
Jander, seu texto me deixou emocionada. Infelizmente os ponteiros do relógio não voltam. Com certeza, você ainda é um pouco daquele menino querendo um pedaço de bolo.
Um ano novo repleto de alegrias para você! ❤️
Cleber disse…
“ Aceita o bolo, moleque”, me parece uma frase que poderia ter sido dita com a voz retumbante proveniente da mente astuta de um sábio ancião com quem convivi por 48 curtos anos.
Anônimo disse…
Não descontar no Alex seria o marco para as mudanças... um alívio pra alma...
DÉBORA CAPERUTTO disse…
Que lindo, Jan! 💕 Mas acho que deveria ter dado um soco no Alex 😬
Anônimo disse…
Um ano inteirinho de crônicas do Minesso. Obrigada por proporcionar leituras que fazem a gente refletir e se emocionar. Já disse: ansiosa pelo seu livro em 2025! Keep writing ✍️
Soraya Jordão disse…
Se apresse em cursar Música. Vai fazer muita diferença, quando daqui alguns anos, vc voltar os ponteiros da memória.
Zoraya Cesar disse…
Jander, de todas as suas crônicas maravilhosas ( e todas são, seu safado), essa é uma q a gente tem de ler de vez em qd, para nosso próprio bem. Nao q eu nao tenha ficado um pouco deprimida, mas que é de uma sabedoria profunda. Pq, tendo noção de que o tempo nao para, podemos, como disse a Soraya, tomar atitudes agora que nao nos deixem encarando os ponteiros depois.
Albir disse…
Fiquei fazendo impossíveis e nostálgicos retornos às minhas saudades. Inspirador!

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