VISÕES DE UM OUTONO DISTANTE >> Sergio Geia

 


Como um drone e sua visão panorâmica. A praça colorida, carrinho de pipoca, de algodão-doce, de cachorro-quente, de balões de gás hélio, como antigamente; no centro de tudo, a grande igreja — sempre ela, as cidades sempre se erguem ao redor delas. 
 
Podia ser cena de música, de história de livro ou mesmo narrada por um amigo tomando cerveja num bar (Trem Azul?). Rubem Braga, por exemplo, tem uma cena assim, ou quase. Está na praça de uma cidadezinha do interior do Rio, moços e moças andam em círculos ladeando canteiros floridos num ritual de paquera, até dar hora do cinema, do encontro no escurinho bem RitaLee, ou da volta pra casa; antigamente era assim. 
 
Mas o drone continua a registrar. É outono. Crianças brincam sem desperdiçar o tempo da infância. O parque colorido, balanço, escorregador, gangorra. Tem até um trator vermelho novinho em folha, com volante e marcha, para as crianças brincarem de dirigir. 
 
Flores coloridas, banquinhos de madeira envernizada, pardais, bem-te-vis, quaresmeiras e jacarandás. A praça pulsa quando o menino passa por mim. 
 
Banho tomado, cabelo preto molhado, penteado de lado, ele rescende a perfume, mesmo tão criança. Há uma expressão nele que a mim é bastante conhecida e que revela curiosidade e sede. Roupa limpa, imaculada, e de sapatos. 
 
Vai primeiro ao pipoqueiro e, interessante, não pede pipocas, somente queijos. A mulher enche o saquinho. Depois vai ao homem do doce, compra balas, chicletes, pirulitos e chocolates. Com tudo em mãos, corre pra dentro da igreja. 
 
Eu continuo a espiar o colorido tão vívido e musical, me faz bem. Antes de partir, entro no Santuário também. Por alguns instantes ajoelho e rezo, mas como meus joelhos doem, Deus! Logo uma música começa e, sorridente, vestida de branco (óbvio), ela entra. No altar, um homem alto, forte, careca, com cravo na lapela e a cara igual a do Maguila. E também um padre de rosto vermelho. E também um coroinha de cabelos pretos molhados, penteados de lado, tão íntimo de mim. 
 
O altar escuro, decido ir embora. Chove. A praça parece feia e a pintura da igreja descasca. 
 
 
 
Ilustração: Pixabay

Comentários

Jander Minesso disse…
Caralho, Sergio, DUAS LINHAS. Você virou o negócio do avesso em duas linhas. Foi doloroso e nostálgico. E apesar da dor, me deu uma sensação boa no coração, talvez pela minha relação torta com igrejas e deuses. Lindo texto, meu caro.
Manoel Nunes disse…
Sérgio, admiro sua habilidade, não apenas com as palavras, também com toda a construção do texto. Cada palavra é um tijolinho devidamente colocado, resultando numa arquitetura textual maravilhosa.
Soraya Jordão disse…
gosto muito da sua habilidade para descrever as cenas. Tem movimento e sentimento.
Mário Baggio disse…
É, antigamente era assim... Num tempo em que os propósitos vinham do coração. Adorei.
Zoraya Cesar disse…
De um lirismo triste e ao mesmo tempo tão doce são essas memórias. E vc a emocionar corações empedernidos. Que texto! Rubem Braga ficou orgulhoso. Como a tristeza pode ser doce e ao mesmo tempo tão doridas.
Albir disse…
Que beleza, Sérgio!
Revisitei minha própria praça e igreja.

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