DEUS DA GUERRA >> André Ferrer
A bola caiu das mãos do menino e rolou até o canto mais obscuro da praça. Ele, que já conhecia o mundo em termos de seco e molhado, sombra e sol, bravo e feliz, engatinhou e cruzou o canteiro de relva. Sob um emaranhado de galhos, a bola branca se transformara! O arbusto fazia sombra, mas também filtrava uma tinta que pintava a bola de verde.
“Saia daí menino. É perigoso!”, a mãe de repente.
Pois um mendigo ali se abrigava. Um espécime das trevas, que jamais tomava banho e se alimentava da carne fresca das crianças.
“É mentira”, fez o menino. “A minha bola...”
A questão é que o Deus da Guerra custa a nascer. Muitas bolas brancas trocam de cor até que o Deus da Guerra cresça e comece a desconfiar até de
si mesmo. A espera é longa até que os instrumentos ganhem acuidade. Quando se desvelam as faces do não, da vergonha e do dinheiro, ele amadurece.IMAGEM: ChatGPT
“Abra na página vinte e cinco do catecismo!”
Na orla de um abismo, um anjo detém uma criança prestes a cair. O desenho é realístico – “tirando, é claro, esse moço... ou moça... com asas nas costas”, o menino pensa. A professora é minuciosa e parece falar com cegos. O desenho, por causa disso, fica mais severo. Enquanto explica o propósito dos anjos e o modo como eles barganham com os humanos, a mulher beira a fúria. Uma fúria inexplicável. Gratuita. Nos rostos das crianças, o amor e a culpa se confundem.
“Professora”, o menino chama. Está intrigado e a coragem do Deus da Guerra, que é sagrado, pagão e legítimo, fagulha dentro dele. “Professora, eu preciso perguntar uma coisa”.
“O que é?”
Para confirmar, ele abre bem a página do livro e tenta se lembrar de outra ilustração, também realista, a respeito de pássaros. Se havia um verbete da Barsa que o menino realmente adorava: aquele sobre as mais variadas espécies de pássaros.
“O que é?”
“Esse anjo tem asas.”
“Sim.”
“Asas cheias de penas.”
“Sim.”
“Penas iguais às de um pássaro?”
Mais corajoso, agora, o Deus da Guerra comemora. Na sua curta existência, ele jamais rira tanto na companhia de outras crianças.
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Esta crônica faz parte do projeto Crônica De Um Ontem e foi publicada originalmente em 21 de novembro de 2016
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