PEQUENA VIAGEM POR DENTRO >> Sergio Geia
Não gosto dessas viagens. Quanto mais falar sobre. Mas aconteceu. Às vezes acontece.
Ela me disse que eu estava diferente. Depois completou:
— Sentimental, talvez.
Eu falava sobre a morte. Aliás, a literatura adora esse tipo de papo; eu não. Tinha sido uma semana difícil: um amigo de trabalho na UTI — morreu dias depois, e muitas, mas muitas lembranças de meus pais, que já não estão mais aqui, e que surgiram de repente, talvez, instigadas por um conto que eu estava escrevendo.
Como meus pais só tiveram a mim de filho, disse a ela que existia uma grande chance de eu terminar a jornada solo. Nada do outro mundo, imagina, quem sempre foi só sabe se virar, e se vira muito bem, até gosta, mas é inevitável não sentir uma angústia, sentir-se beliscado pela melancolia, uma tristeza que se apodera. A conversa seguia por esse caminho, algumas nuances e então o comentário sobre o sentimentalismo-surpresa.
Eu disse que não me enxergo sentimental, talvez sensível, se é que existe diferença. Tenho um lado sentimental que aparece pouco, acho que não dou espaço pra ele. Meu pai era frio, dizia minha mãe. Devo ter herdado um pouco dessa frieza. Quando fico sentimental por algum motivo, as pessoas estranham.
Não herdou não, ela me corrigiu. Comigo não é nada frio. De nenhum jeito. Nunca te vi sendo frio com ninguém. Você que talvez sinta uma necessidade de se blindar, inconscientemente. Mas você não é assim com as pessoas. E também não é frio com seus filhos.
Ela me conhece há mais de 20 anos. Nos encontros de almas que o mundo às vezes proporciona, o nosso aconteceu agora. Eu sorri.
Lembrei-me também nesses dias de uma crônica da Clarice (Dez anos, Clarice Lispector - Todas as Crônicas – Rocco, página 327), uma mãe e seu filho, às vésperas dele completar dez anos. Ele (uma criança) dizia que sua alma não tem dez anos, acha que tem oito, que deveriam contar os anos pela alma, não pelo corpo. Começou a cantar e disse que estava cantando em sua homenagem, uma espécie de presente de aniversário. Ao mesmo tempo disse que não aproveitou bem seus dez anos. Depois completou:
— Não, não quero dizer aproveitar fazendo coisas, fazendo isso ou aquilo. Quero dizer que não fui contente o suficiente. O que é? Você ficou triste?
Tudo começou quando ela disse que teria um velório. A nossa conversa sobre morte, sobre ser filho único (a amiga que perdeu a mãe é filha única; ela mesma tem apenas um filho), sobre presenças e ausências, a semana estranha, a crônica da Clarice, enfim, tudo se misturou e eu quase chorei; quase.
Ilustração: Pixabay
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