OS SEGREDOS QUE A MATA ESCONDE >> Zoraya Cesar
Há coisas na vida que a ciência refuta, por não saber explicar. Mas nós, povo da mata, sabemos que há, sim, mais coisas entre o céu e a terra que a nossa vã filosofia.
---
Quando meu pai fugiu nos sumidouros da mata, eu era pequena, mas ficaram algumas poucas lembranças aterrorizantes. Os gritos, o sangue, o som oco dos espancamentos. E as sequelas deixadas no meu irmão mais velho. E os pesadelos constantes.
---
Na roça, mulher não pode ficar sozinha muito tempo, que sempre aparecem aproveitadores para tentar tomar a propriedade, fazer maldades, essas coisas. Minha mãe tinha casa e terra, mas era jovem, sozinha e tola. Casou mal. Ele só a explorava, e ainda bebia. Bebia e ficava violento. Minha mãe nunca gemeu, nunca derramou uma lágrima, nunca se queixou. Mas eu me lembro de seu rosto inchado e olho roxo. Não entendia muito bem, mas sabia, em minha inocência, que não era bom. E depois, tinha meu irmão mais velho. Frederico. Meu amado Frederico! Sempre tão maltratado e espancado, desde pequeno, que ficou abobado. Não critiquem minha mãe, ela não podia fazer nada. Para o celerado tocar fogo na casa com todo mundo dentro, não custava muito.Era sangue ruim também, tanto que matou um homem no bar só porque não foi com os cornos do coitado. Rezo até hoje por essa alma, pois foi graças à sua morte que meu pai sumiu. E uma nova e boa vida começou pra nós.
---
Era sargento reformado. Seu Robledo. Rijo como um cavalo, magro como um varapau, caboclo rastreador, o melhor da região, o melhor de muitas regiões (dizem que o capitão da tropa quase implorou para ele não dar baixa). Tinha uma presença de dar medo em assombração. Nunca o vi sorrir. Nunca levantava a voz, mas o um ou outro desavisado que ousasse gritar com ele ficava um bom tempo sem poder falar. Nem andar.
Não era meloso: era rude, duro como o solo daqueles sertões, mas eu duvido que alguém tivesse coração maior. Tratava meu irmão com carinho e tinha uma paciência infinita para ensinar-lhe as coisas. Dava gosto vê-los sair pra pescar, eviscerar os peixes, preparar a janta.Ele nunca nos deixou chamá-lo de pai, dizia que não gostava
de mentiras, que não era nosso pai, mas nosso padrasto, e até isso, somente enquanto
minha mãe e Deus assim o quisessem. Nós deveríamos nos
dirigir a ele como Seu
Robledo. Meu irmão e eu não nos importamos. Já o amávamos como pai, um nome não
faz diferença. E, desde que ele se mudou, minha mãe passava o dia inteiro
cantando, pra dentro, sabe, com a boca fechada? Bom demais.
Eles mal conversavam, se falavam pelo olhar. Depois do jantar, os dois sentavam no alpendre, de mãos dadas, e ficavam assim, em silêncio, olhando as estrelas, ouvindo os sons do mato. Meu irmão e eu sentávamos na rede, também nós em silêncio, respeitando aquele momento, que a gente não entendia muito bem, mas sentia.
Para ele, uma mulher tinha de saber se virar sem homem. E dá-lhe de me ensinar a rastrear, pescar, caçar e acampar. A tocaiar e emboscar pessoas e animais. A atirar, também, e a usar a faca pra me defender. Era cansativo, desconfortável e muitas vezes assustador, mas eu gostava da companhia dele e nunca fui chegada a brincar de bonecas mesmo. E a lembrança do que passáramos com meu pai me dava forças para me dedicar.
Não havia menino ou homem melhor que eu nos misteres de uma roça nem na sobrevivência no mato. Eu sabia lutar, eu sabia brigar, atirar e era muito boa na faca. Mas não foi só isso, Seu Robledo me botou pra estudar também. Minha mãe era semianalfabeta, meu irmão ainda estava nas primeiras palavras e contas (o ódio que sinto do nosso pai...), Seu Robledo era meio chucro com as letras também, dizia que eu ia ser o orgulho da família.
Caboclo Robledo também conhecia os segredos das ervas, dizia que a mata tinha seus mistérios, como a vida.
Foram anos de glória. Minha mãe trazia um sorriso Monalisa na boca o dia inteiro. Meu irmão ia ‘desabobando’. Seu Robledo engordou nossas poucas vaquinhas e galinhas poedeiras, afastou os predadores (sem nunca matar nenhum. Dizia que o verdadeiro mateiro só matava pra comer ou se defender), nossa plantação cresceu.Aqui na roça a gente aprende desde cedo que a vida é cíclica.
As coisas nascem, morrem e tudo é assim,
um eterno fim e recomeço. E, de qualquer
forma, dizia Seu Robledo, do destino ninguém escapa; lembre-se sempre disso,
pequenina, repetia para mim
Eu já disse que, até Seu Robledo chegar em nossa vida, meu irmão e eu tínhamos pesadelos horrorosos? Não sei se pelos chás que ele preparava ou por sua simples presença, o fato é que os malditos pesadelos sumiram.
Em mim, foram substituídos por sonhos premonitórios e estranhos.
(Conto isso porque agora a história toma outro rumo, e os sonhos fazem parte dela. E, como dizia Seu Robledo, do destino ninguém escapa).
---
Nos últimos tempos, Seu Robledo andava inquieto. Ele abraçava meu irmão mais do que nunca, e não largava dele. Uma noite teve uma longa conversa com minha mãe, o que me pareceu de péssimo agouro, pois eles mal se falavam, como disse. E a partir daquele momento o sorriso Monalisa desapareceu, e a cantoria também.
Quanto a mim, ele passava a mão em minha cabeça e dizia: você é muito especial; tem de estudar muito e nunca deixe de fazer o que deve ser feito. Falo a vocês: Seu Robledo nunca, nunca, encostara a mão em mim. Voltei a ter pesadelos, dos quais não me lembrava ao acordar, mas que desaquietavam meu sono.
Sabíamos que algo muito ruim ia acontecer, mas ele não me dizia nada. Perguntei pra minha mãe, mas ela só respondia, enigmaticamente: a vida segue seu curso, minha filha, e nada é para sempre. Aquilo me revoltava tanto que eu saía correndo e me atirava na água gelada do rio, para me acalmar. Mas nunca interpelei meu padrasto ou minha mãe. Fui criada para respeitar os pais.
----
Como toda 4a-feira, Seu Robledo saiu para caçar tatu, a carne preferida de meu irmão. Passaram-se os dias, e ele não voltou. Minha mãe me prendeu dentro de casa. Disse que os vizinhos iam procurar e que era perigoso para mim ir atrás de Seu Robledo. O pessoal das redondezas encontrou rastros de onça e sangue perto do rio. E todos acreditaram que foi assim que meu padrasto morreu.
Mas não eu. Algo me dizia que ele morrera por morte matada, e não era por bicho. Como se Sargento Caboclo Robledo fosse ser comido por onça!Eu não tugi nem mugi nem chorei. Apenas pedi à minha mãe para mandar Frederico para a casa da madrinha. Não podia me dar ao luxo de ver meu irmão sofrer. Tinha de me manter forte para dar conta do que viesse.
E veio.
----
Por pequena que eu fosse quando ele fugiu, soube quem era assim que o vi, sentado na cadeira de Seu Robledo (meus olhos se encheram de sangue), segurando o braço de minha mãe, dando ordens como se fosse o dono da casa.
O homem que se dizia meu pai voltara.
----
Continua dia 15 de agosto a 2a e prometo, última parte.
ILUSTRAÇÕES CORTESIA DE COUNTESS NÁDIA VELVET COLDEBELLA
Comentários