O INFORMANTE CANSADO 2ª parte - Uma aventura do Detetive sem Nome >> Zoraya Cesar

O informante cansado - 1ª parte - Timmy foi informante de bandidos e de polícia até ser preso. Mas era boa pessoa, um pobre coitado. Depois de anos, voltou a me procurar e pediu-me para encontrá-lo. Fui. O lugar era sórdido. 

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O quarto era uma estranha extensão da personalidade de Timmy: acanhado, decadente e limpo. Mesmo sem ter onde cair morto, vestia-se como um dândi pobre. Ele cheirava a água de colônia barata e, o quarto, a desinfetante.

Um catre, uma pia encimada por um espelho baço, um banco capenga. Ajeitei-me de modo a ver a porta e a janela. Nenhuma paranoia é exagerada na minha profissão.

Timmy tinha o olhar melancólico de quem chegou atrasado à estação e perdeu o trem. 

 - Obrigado por ter vindo.

Assenti silenciosamente e esperei. Algo me dizia que não se tratava de dinheiro. Que eu até daria, sempre tive pena do Timmy. Ainda mais agora, ele envelhecido e ultrapassado.

- Olha aquelas pessoas lá embaixo. O mundo mudou tanto. Antes até os bandidos, a ralé, tinham uma certa honra, sabe.

Continuamos. Eu, calado; ele, olhando para rua. No quarto escuro, a luz de um neon vermelho em seu rosto fazia-o parecer um velho demônio triste.

- Tá vendo aquela mulher sentada na porta do bar, pedindo uns trocados? Compra e revende as crianças que as prostitutas não podem criar porque o cafetão não deixa. O nome daquele molecote ao lado dela é ‘menino da porteira’. Já lançou pela porta do inferno adentro dezenas de infelizes. Nenhum deles têm salvação. Miseráveis de uma vida miserável.

Pensei no caldeirão que borbulhava lá fora, efervescente de brutalidade, no qual a luta pela sobrevivência era sempre suja, no qual os fracos não sobreviviam e os fortes seguiam impunes. Um mundo cão. Sempre foi assim e sempre será.

Mas eu não podia fazer nada. Por mais que sinta vontade, não saio matando todo bandido que encontro. Já matei, até com gosto, confesso, mas nunca por capricho, sempre por precisão. Como vocês sabem, e Timmy também, não sou assassino nem justiceiro. Tive sorte.

- Timmy, consigo te botar num lugar decente, longe desse chiqueiro. Você trabalhava com explosivos, conheço uns empreiteiros que poderiam te dar uma força.

Lentamente, ele voltou o rosto para mim. A luz neon azul que agora entrava pela janela fazia-o parecer um fantasma afogado, a face acinzentada e cavada, os olhos fundos nas órbitas.

- Tarde demais pra mim. Estou desenganado.

Meu coração, mesmo meio empedernido pela vida, doeu. Pobre Timmy!

- Eu te ajudo.

Ele negou com a cabeça e baixou os olhos. Levantei-me. Não tinha mais o que fazer ali.

- Eu sei quem matou Miortvy. Era o que eu queria te dizer.

Miortvy! Meu primeiro parceiro, veterano na polícia, me ensinou a ser safo e sobreviver. Chorei muito sua morte covarde numa emboscada. À época, não conseguiram encontrar seus assassinos. Desgostoso, saí da polícia, me perdi na vida, e quase entro no lado errado do combate. Mas isso é outra história.

- Eles controlam uma rede de prostituição infantil, mas a polícia e a lei não entram aqui nessa latrina.

- Onde eles estão?

- Vocês dois sempre foram direitos comigo. Tá na hora de retribuir.

- Onde? - gritei

- Aqui perto. Mas não suje suas mãos com essa corja. Confia em mim.

- Hein?

-  Só queria que você soubesse. Mas não faça nada agora. Confia em mim.

Senti uma emoção violenta. Depois que escapei do caminho das trevas, decidi que não me tornaria um justiceiro. Nunca fui atrás de vingança. Mas agora os assassinos do meu parceiro estavam ao meu alcance!

A luta contra meu ego e impulso homicida foi feroz. Fosse eu jovem e tolo, ou se o álcool ainda fizesse parte da minha rotina de autodestruição, teria sucumbido. Mas eu não era mais jovem, e nem um pouco tolo. E há muito tempo aprendera a controlar minhas fraquezas etílicas. 

- Obrigado por vir. O mundo é muito solitário pra gente como eu.

Deu uma pausa e sussurrou:

- Queria ver alguma justiça no mundo, sabe? 

Agora, a luz neon verde da danceteria dava-lhe um palor surreal, como a lembrança de um sonho há muito esquecido. Posso te ajudar, Timmy? Não.

Fui embora.

(O que ele quisera dizer com ‘confie em mim’?)

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Cheguei em casa, joguei toda a roupa na máquina e tomei um banho demorado. Sentia-me sujo e enjoado. A sordidez do lugar, o passado redivivo, a situação de Timmy, tudo me fizera muito mal.

Preparava uma dose de uísque quando toca o telefone. Um amigo da minha época de polícia.

- Cara, sabe o Timmy? Surtou! Se explodiu junto com um bar lá na Soberanos, matou bandido pra cacete, uns filhos da puta que a gente nunca conseguia pegar. Deixou um bilhete bizarro, dizendo que os bons amigos mereciam ter paz. Pobre Timmy! Até na morte ele se ferra.

Desliguei, a mão tremendo um pouco. Desisti do uísque. Calcei meus tênis.  

Plena madrugada, só eu na pista. Ia correr até expulsar aquela sensação ruim de meu peito, até o corpo pedir arrego.  

Correr sempre clareia a minha mente. Entendi o ‘confia em mim’.

A vida é a vida. Não dá pra se envolver demais na dos outros, ou você afunda junto.

Pela primeira vez em sua miserável existência, Timmy conseguiu fazer o que queria, ‘colocar alguma justiça no mundo’. De uma tacada só, acabara com seu sofrimento, eliminara alguns merdas, e, ao vingar a morte de Miortvy, tirou esse carma das minhas costas. Fui com o intuito de ajudá-lo, mas foi ele quem me ajudou. Obrigado, Timmy.

Suava. Sentia o coração bater em meus tímpanos, a veia da testa latejar, as pernas queimando.

O dia amanhecia, dourado, o sol refulgindo nas águas ainda escuras do mar.

O passado é algo que deve ser deixado para trás.

Tava na hora de voltar pra casa.

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O informante cansado - 1ª parte - Timmy foi informante de bandidos e de polícia até ser preso. Mas era boa pessoa, um pobre coitado. Depois de anos, voltou a me procurar e pediu-me para encontrá-lo. Fui. O lugar era sórdido. 

 O informante cansado - 2ª parte - "fazer alguma justiça no mundo" pode ter várias interpretações. Depende de quem o diz. O importante é saber a hora de voltar para casa.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Comentários

Maria disse…
Muito bom, Zô. Esse conto foi ótimo.😊
Poor Timmy.
branco disse…
Sucinto e profundo, exatamente como deveria ser. Uma mudança muito sutil de noir (na primeira parte) para anos 70/80. Há um bom tempo não lia um conto polícial digno , a espera valeu a pena... e muito.
Érica disse…
Uau!
Mulher, você escreve bem pacas!
Eu ia parar só no "uau", mas tenho certeza de que você ia me perguntar o que eu quis dizer com isso kkk
Marcio disse…
Se eu tivesse o talento da Zoraya, escreveria um ensaio sobre a criatividade do texto que acabei de ler.

Mas, como eu sou apenas um Timmy-comentarista, vou repetir o que já escrevi diversas vezes: a única coisa que não surpreende, na obra da Zoraya, é a sua capacidade de surpreender sempre.
Anônimo disse…
Eita! O informante decidiu finalizar sua carreira como "homem bomba" e exercitar sua experiência em explosivos contra "lixos humanos"!
Ana Raja disse…
Zoraya, muito bom! Gosto da construção dos diálogos. Parabéns.
Antonio Fernando disse…
Gostei muuuuito! Parabéns!!
Albir disse…
Que beleza, Zoraya!
Ainda estou meio trêmulo, meio explodido, mas o final foi de alguma justiça, embora trágico.
Soraya Jordão disse…
O passado é algo que deve ser deixado para trás. Li essa frase em boa hora. Gostei muito da descrição do quarto. Gosto muito das suas descrições e ambientações.

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