O EMPREGO >> Albir José Inácio da Silva

 

Foi o último a chegar, o Alfredo. Assustado? Não, desamparado! Todos conheciam sua ojeriza por assuntos de morte: defuntos, enterros, cemitérios. Parava de frequentar uma casa quando sabia que alguém tinha morrido lá. Mas nesse velório não teve como não ir. Felício era amigo de infância.

 

Pretextou até um reumatismo, mas os outros ameaçaram buscá-lo à força. Se ele se desesperava só com essas conversas, imagine o leitor como estava se sentindo diante da materialidade da morte. Sofreu a vida toda com esse tema, que parecia ser o preferido de seus amigos.

 

Não sei se gostavam mesmo ou se, sádicos, se divertiam com o sofrimento dele. Felício, agora velado, era o mais entusiasmado. Não perdiam oportunidade para falar da “indesejada das gentes” – poetizavam, enquanto Alfredo se contorcia. Dizem que ele ficou assim depois de ler umas histórias de Nádia e Zoraya no Crônica do Dia. Acredito.

 

Mas Alfredo também sofria de desemprego há quase um ano, com contas atrasadas e aviso de despejo. Andava humilhado, não queria mais vaquinhas, doações, cestas básicas, queria um trabalho. Há uma semana Felício chegou no bar com um sorriso e uma novidade: emprego, bastava procurar aquela pessoa naquele endereço. E entregou-lhe o papel.

 

A tarde podia ter terminado assim, só felicidade, mas o tema morte voltou à mesa. Alfredo ia se levantar, mas sentiu no bolso o papel de emprego. Resignou-se. Sofreu.

 

Felício, megalomaníaco, falou das vantagens de se morrer na zona sul, da dignidade com que se morre lá, do choro contido, sem escândalos. Lembrou os trajes elegantes e o mais importante: enterro no São João Batista, entre as celebridades. Enfim, já que se tinha que morrer, que fosse ali.

 

Beto da Muda discordou. O melhor lugar para se morrer era a Tijuca, com suas igrejas e seminários, suas tradições e seu ambiente familiar. A morte de um ente querido na Tijuca não era só da família, era da comunidade: acolhimento, calor humano e solidariedade.

 

Mas o garçom, íntimo e apressado, não entendeu o “morrer bem” e disse que o melhor lugar para isso era a Baixada. Lá morria-se fácil, sem médico, sem saneamento, com chacinas e epidemias. Difícil para quem ficava e tinha que encomendar o morto, mas os políticos ajudavam e sempre se conseguia uma cesta básica de enterro. Não suportando mais, Alfredo conseguiu gemer um agradecimento pelo emprego e fugiu de lá.

 

Agora estavam ali para a última homenagem a Felício. A cerveja, que fazia os outros mais falantes, mais emocionados, parecia mergulhar Alfredo em profunda depressão. O tijucano da Muda não o perdoou.

 

- Tá certo que isso aqui é um velório, não é pra ninguém ficar alegre. Tá certo que você não goste de enterros, muita gente não gosta. Mas dá pra melhorar essa cara? Parece que tá aqui obrigado. Nem a viúva você cumprimentou. Que falta de consideração! Principalmente com Felício. Ele não era seu amigo de infância? Não te ajudou tantas vezes? Agora mesmo ele não te conseguiu um emprego?

 

- É, conseguiu – balbuciou Alfredo como se estivesse no próprio enterro.

 

E tirou do bolso um crachá de ajudante de necropsia no IML.

 

 

OBS.: Este texto faz parte do Projeto Crônica de um Ontem e foi publicado originalmente no dia 4 de julho de 2012.

Comentários

Zoraya Cesar disse…
HAHAHAHAHAHAHAHA, ai ai ai, como se já não fosse honraria o suficente ser citada num texto de D. Albir, ainda fui agraciada com esse tom melomorbidramático engraçadíssimo! Que final! (mas eu q levo a fama,né?).
Essa faz parte do projeto crônica de um sempre, D. Albir!
Ana Raja disse…
Albir, que história boa. Adorei!
Clara Braga disse…
Kkkkkkkkkkkk! Nádia e Zoraya marcam qualquer leitor! Adorei!
Jander Minesso disse…
Hahahahahahahahaha! Que cara ingrato! Bela citação metalinguística, também, Albir!
Adorei! Sobretudo a piscadela para nossas queridas Nadia e Zô e o desfecho inusitado!! Muito bom como você construiu a história e o personagem, me senti na pele dele.
Albir disse…
Obrigado, Soraya, Zoraya, Ana Raja, Clara, Jander e Afonsina, pelo carinho da leitura e dos comentários.

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