NÃO É DESVARIO, É AMOR


Quem reina o quarto do enorme casarão desbotado?

Quem pisa o chão que range o amor e a dor ou sei lá o quê?

De quem são os rostos enfeitando os retratos espalhados sobre móveis que há tempos não são limpos? Sufoco com a poeira que me cega.

Quem é você aí dentro?

Que bolero rodopia aos seus pés, assim, lindo? Vejo a luz do sol na transparência da sua camisola esvoaçante. Sua imagem no espelho é a confirmação da previsão dos búzios diante da revelação do terror desse amor. Fui avisado de todas as armadilhas que o seu andar seria capaz de coreografar. Não dei importância. Tapei os ouvidos para ficar de cara com o sorriso arco-íris enlouquecedor.

Ainda dava tempo. Jurei que dava. Pensei que daria.

Sem destino, saí correndo pelas ruas, me escondi em becos, vivi com ratos nos esgotos, não pulei carnaval, não bebi com os amigos, não escutei mais o disco do Chico; fiz greve de fome, acabei com a caixa de remédios para dormir, esgotei as lágrimas que gritavam por você a todo instante.

Não suportava mais. Meu corpo era o piso mal encerado da solidão. Minha derradeira tentativa foi acender uma vela e desejar que viessem me tirar do inferno, me ajudassem a alcançar o céu. Me prometeram o azul celestial. Eu sei disso, já li em algum lugar. 

Quero você no infinito do que sou.

Acredito na reparação dos pobres de alma, dos que articulam poesia e dos que se rendem à eternidade do amor.

Talvez seja esse o significado de destino.

Pensar em Heloísa me afasta da mediocridade do mundo. 

O vento fez a cortina bailar ao cântico final.

As mãos da redenção se enroscaram em meu pescoço. Heloísa, Heloísa! Seu hálito doce hei de conhecer...

A porta é aberta sem delicadeza.

— Heitor, basta de escrever por hoje. O jantar está servido.

Interrupções, Heloísa, me alucinam.


Comentários

Luiz Silva disse…
Que preciosidade de crônica! Não tem preço acordar e ler um texto assim.
Zoraya Cesar disse…
"Meu corpo era o piso mal encerado da solidão." Muito inspirada essa frase! Puxa, coitado do Heitor, tão dramático, tão denso e justamente sua amada Heloísa o tira do devaneio da escrita? Haha, mto sutil, mto bom. O feijão e o sonho. Gostei muito, final ótimo!
Gizele disse…
As vezes a vida pode ser isso tb… pensar em alguém, sair da rotina, da mediocridade da existência dos dias habituais e por alguns minutos poder se transportar a viver algo desconhecido: o amor. Afinal, o que é o amor?
Tatiana disse…
As interrupções também me alucinam! rs
Parabéns por esse gran finale!
Luciana G. disse…
O final, chamando pra realidade e atualidade do momento… amei! E quantas vzs nos perdemos num pensamento que nos tira o chão né? Os simbolismos bailam por entre: “me vi no texto, ops.. não me vi mais”… rsss 🫠
Soraya Jordão disse…
Ana, minha querida amiga e maravilhosa escritora, que crônica! Tanta verdade, tanta beleza, tanto encontro e desencontro. Amei profundamente. Ao caminhar pelo seu texto, quantos tesouros.
Albir disse…
Que maravilha, Ana!
Encantado. Parabéns!
Gabriela Malta disse…
Ana, é belo o seu transitar poético pelo texto. A cada dia admiro mais sua criatividade e a escolha cuidadosa das palavras. As urgências do real estão sempre nos raptando dos nossos escritos. Insistir permanecer no lugar de escritor é muito duro. Todos os dias novos ajustes à rotina. Parabéns pela escolha do tema. Sucesso!
Maria Borghi disse…
Incrível você Ana Maria, as palavras as vezes soltas bailam sobre o papel em branco, você as coloca de forma mágica, trazendo sentido ao conjunto da obra. Lindo texto, vc amei.
Jander Minesso disse…
Gente, que delícia de texto! E a quebra no final foi ainda mais deliciosa. Xonei!

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