LEITO QUATRO >> Ana Raja


O processo de criação de uma história escrita passa por diversos desafios. E tudo pode ser gatilho para que a caneta ou as teclas do computador transmitam a fiel inspiração do amontoado de palavras encerradas por ponto final.

Ao escrever um texto, faz parte do meu processo lembrar do que pensei, vi e senti. O quanto de mim tem nele, o quanto do outro está ali. Muitas vezes, sou eu deslizando por uma folha em branco, em outras, quem não conheço fica impresso nas páginas apertadas de sentimentos.

Me lembro de estar em São Paulo e visitar o tio do meu marido em um hospital. Ele estava em uma enfermaria masculina com mais três pacientes. Entramos, falamos um pouco com ele e constatamos a sua boa recuperação. Daí, comecei a olhar ao redor, para aqueles outros rostos, e tive uma crise de choro incontrolável. Saí do quarto e fiquei no corredor, em frente a uma janela que dava pra rua. As pessoas vinham conversar comigo e explicar que o tio do meu marido não corria mais perigo, que eu não precisava ficar nervosa, mas o meu choro não era por ele. Eu senti uma tristeza tão grande por aqueles outros homens. Não sabia nada sobre eles, nem os nomes tampouco o motivo de estarem ali. Seus corpos frágeis, entregues, e a certeza da finitude me abalaram profundamente. Ninguém os visitava naquele momento. Todos pareciam ter mais de setenta anos. Só de lembrar desse dia, o meu coração se aperta nessa página.

Deixei o hospital me sentindo sufocada. Precisava escrever. E tudo o que vivi, naquele momento, coloquei nessas palavras:


Minha mente divagante. Talvez seja pelo cheiro de acontecimentos suspenso no ar, e que ronda a enfermaria masculina de um hospital. 

Quatro macas ocupadas por vidas, de nomes e sobrenomes comuns, sem importância para o momento experimentado. Paciente do leito número tal e um prontuário: é o suficiente para que o médico saiba como proceder diante daquele corpo.

No espaço quadrado, de piso vinílico e de janela fechada, se trava a luta por mais uma chance. Quatro rezas diferentes. Quatro anjos apaziguam a dor da madrugada, e, quem sabe, conversem entre si e contem sobre as aventuras dos seus protegidos. Talvez estejam cansados de tantos livramentos, mas apesar de seus cabelos também já brancos, acompanham os seus humanos até o fim.

A meia luz que invade o quarto vai aumentando com o nascer do dia. O movimento nos corredores se intensifica. Enfermeiros e médicos avaliam os resultados dos exames, conversam sobre as taxas alteradas apontadas no hemograma. Precisam saber como os pacientes passaram a noite e o que estão sentindo.

Paciente do leito um

Não conseguiu dormir, pois a dor na barriga continua insuportável. Nota: ultrassom abdominal.

Paciente do leito dois

Contou que, do nada, um velho, com o qual cruzou na rua, bateu em sua cabeça com um pedaço de pau, o que lhe rendeu os vinte pontos. Assegura que a sua cura veio de seu anjo da guarda. Nota: delirando.

Paciente do leito três

Permanece com os braços e pernas amarrados. A confusão mental provocada pelo tombo ainda não foi controlada. Nota: conversa desconexa.

Paciente do leito quatro

Não fala. Seus olhos abertos e perdidos em algum instante não mostram indícios de melhoras. Seu corpo pequeno, magro e indefeso combina com a história de todos nós. Nota: tratamento paliativo.

O paciente do leito três reclamou da música tocada pelo do leito quatro. Insistiu ter visto o corpo do colega ao lado flutuando, e que vários seres estranhos o levaram dali.

Horas depois, o responsável pela enfermaria vinte e três informou a central que há um leito disponível.

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Imagem © Foundry Co, por Pixabay

anaraja.com.br

Comentários

Soraya Jordão disse…
Sensacional. A angústia e a brevidade da vida nos conduz até o FIM. Parabéns, Ana!
Jander Minesso disse…
Chorei, né? É uma vivência que nenhum de nós gosta mas, ao mesmo tempo, parece inevitável. Me lembrou uma janela no fim de um corredor, mas outro dia eu conto essa história. Tem beleza e dor andando de mãos dadas no seu texto, Ana. Obrigado por ele.
Luciana G. disse…
Texto de gatilhos atualizado com sucesso… real! Não tem como lê-lo sem olhar um pouco da minha experiência vivida. A diferença foi que de todos os leitos ocupados, o que “vagou”, foi o do meu Pai. Emocionante, profundo, suscinto. A vida deixando claro que somos instantes.
Anônimo disse…
Impossível não se vê nessa crônica, excelente trabalho
Zoraya Cesar disse…
Eu SABIA! EU SABIA q seu texto ia mexer comigo.
por dois gatilhos inesquecíveis: ver pessoas largadas nos leitos da Santa Casa da Misericórida, RJ, qdo eu era fisioterapeuta me fez decidir largar a profissão. Depois relato em áudio, se quiser.
o segundo gatilho: meu paizinho morrendo num leito de hospital.
terceiro gatilho: tu escreve bem pacas. um prazer, mesmo MUITO doloroso, ler seu texto. Vc ter chorado de se acabar qd saiu do quarto explica uma parte dessa sua sensibilidade para escrever. Tá tudo aí, no coração.
Maria Borghi disse…
Conto rico em detalhes de sentimentos profundos e que atesta a finitude da vida em geral individualmente solitária e repleta de abandono. Muito bom mesmo.
Albir disse…
Que beleza de texto, Ana!
Traduz com coragem o que evitamos sentir, falar e escrever.
Clara Braga disse…
Fiquei muito tocada com seu texto, Ana!
A certeza da finitude é algo que mexe muito comigo.
Sua sensibilidade ao escrever de forma tão bela sobre a dor é incrível.
Soll Toledo disse…
Perfeita como sempre, Ana! Sua empatia e poder de escrita sempre me comovem. Espero um dia me tornar tão maravilhosa quanto você. Um texto lindo, que nos aproxima de questões que nunca me imaginei pensando, reflexões que nunca imaginei ter. Você é uma grande artista!

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