ELA DANÇA EM MEUS SONHOS - uma aventura do detetive sem nome >> Zoraya Cesar


Na minha profissão, poucos são os que chegam vivos à meia-idade, ou conseguem se aposentar. Uns sucumbem por conta dos riscos do serviço; outros, por inexperiência; alguns por azar ou destino; e outros, ainda, morrem em vida, vítimas de depressão, alcoolismo e outras mazelas. Eu não. Eu sou um sobrevivente.

Claro que isso tem seu preço – um preço que eu pago com prazer. Não que eu seja um hedonista, longe disso. Mas quem trabalha ao lado da Morte sabe dar valor às pequenas coisas da vida. Essa vida estranha, que às vezes parece um carrossel veloz e desgovernado do qual você não consegue sair e, quando sai, está tonto, desnorteado, as pernas bambas.

Trabalho ao lado da Morte, da minha pistola e da minha Ka-bar. E do meu cinismo. Não confio em
ninguém. Como dizem, seguro morreu de velho, mas o desconfiado ainda vive.

Nunca frequento o mesmo bar duas vezes seguidas. Nunca sento de costas para a porta. Sempre sei onde estão as saídas de emergência. Conheço todos os policiais da região. Pelo menos os do meu tempo, que ainda estão na ativa. E isso tudo, tenham certeza, pode ser a diferença entre a vida e a morte, entre voltar pra casa ou ir para o hospital.

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O bar era mal iluminado, todo em madeira escura e couro verde. Atrás do balcão - que lembrava os de filme do Velho Oeste -, um enorme espelho ocupava toda a parede, com prateleiras cheias de bebidas. Entre o balcão e as prateleiras, ficava o dono, que também fazia as vezes de barman e gerente. Tinha a cara de um Leprechaun enfezado, o corpo de um touro e um mau-humor crônico. Chamava-se Callahan Clint, por dois motivos singelos: por ser irlandês e por ter uma mãe fã do personagem Dirty Harry e do ator que o interpretava. Tinha uma espingarda de repetição debaixo do balcão e sabia usá-la com destreza. O lugar era caro e elegante, todavia - dificilmente havia altercações dignas de nota, muito menos de tiros de espingarda.

Não havia área para fumantes; de madrugada o salão parecia um beco londrino em pleno fog. Fazia parte da mítica do lugar e quem se incomodasse que desse o fora.

Às 6as-feiras um pianista moreno com o nariz achatado de quem luta boxe e uma cantora ocupavam o palco pequeno demais para eles. A cantora vestia-se invariavelmente com uma calça apertada de lantejoulas azuis e uma camisa acetinada da mesma cor. Era magrela, parecia uma retirante de Biafra, puro osso, pequena, os quadris estreitos, as compleições de um menino, não tinha peito, não tinha bunda. Não tinha sex-appeal. Até o momento de abrir a boca. Cantava como que possuída por uma Julie London, uma Sarah Vaughn. À meia-luz, era como se sua voz saísse das profundezas de outro mundo. Nesses dias, o lugar ficava tão concorrido, que só os clientes especiais – como eu – conseguiam entrar. No resto da semana a música variava entre canções de bar tipicamente irlandesas e jazz. Tudo dependia do humor do Callahan. De qualquer forma, em qualquer dia era bom e aconchegante estar ali, chegar depois de um dia pesado e relaxar. Era o que eu fazia naquele momento.

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Bebia lentamente um Laphoraig 10 anos, um prazer que eu me dava uma vez por semana e uma vez por semana apenas. Eu gostava demais de álcool, uísque, especificamente, para me dar ao luxo de beber todo dia. Conheço meus pontos fracos. Mulher, por exemplo, é quase um calcanhar de Aquiles para mim. Ainda mais essa que acabara de adentrar no bar.

Femme fatale.

Morena cor de pôr do sol no Caribe, cabelos escuros longos e anelados, como ondas da maré cheia – sim, sou romântico – caindo sobre os ombros nus. Usava um vestido apertado, cor de vinho, que mostrava toda a sua sinuosidade curvilínea e um decote que revelava até os segredos do Kremlin. Mesmo que eu não tivesse visto seu rosto de grandes olhos castanhos, sua boca perfeita, seu sorriso perolado, eu reconheceria aquele andar flutuante e sensual nem que se passassem mil anos.

Terpsícore.

Terps.

Ela nem reparou no olhar desejoso e cúpido dos machos. Nem para o de inveja das fêmeas. Nem se deu conta que o tempo parou por breves instantes à sua entrada, que o cheiro de fumaça foi, momentaneamente, substituído por seu perfume, a indefectível  fragrância de violeta e musk do Mojave Ghost que ela sempre usava e que sempre me enlouquecera (como se eu não enlouquecesse com todo o resto dela!). Por breves instantes o salão ficou silencioso – exceto pela voz da cantora, mas essa vinha de outro mundo mesmo.

- Oi querido – o mesmo tom sorridente que fazia o sangue correr mais rápido em minhas veias. Mas, atrás da aparência, do sorriso, de tudo, senti que havia algo muito, muito errado. Nós não nos víamos há

anos. E eu não acredito em coincidências.

- Oi querido – ela repetiu, perto da minha orelha. E nesse instante eu soube, sem sombra de dúvidas, que o carrossel da vida, desgovernado e louco, começara a girar. 

Continua dia 12 de maio

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Comentários

branco disse…
As vezes é muito bom "rever" novos escritos como se fossem o primeiro. Este é o caso, muito melhor que excelente!
Jander disse…
Não julgo o detetive sem nome. Sentar de costas pra porta dá mesmo uma sensação ruim. E agora quero saber onde essa história vai parar. Bring on part 2 and make my day.
Marcio disse…
Olá, pessoal! Eu sou um viajante do tempo.
Voltei do futuro, mais precisamente do final da noite de 12 de maio, apenas para trazer a todos um spoiler: o Detetive Sem Nome (detetive sem nome?) se chama Bullitt Bronson, e morre no final, assassinado por Terpsícore, louca de ciúmes ao descobrir que ele tinha um caso com Callahan Clint.

"Se os fatos desmentem a profecia, pior para os fatos" (Nelson Rodrigues).

Se o texto não terminar assim, é porque a Zoraya alterou a conclusão.
whisner disse…
Que legal este texto, bem irônico e divertido. Belas sacadas.
Ana Raja disse…
Aguardando as próximas cenas! Texto muito bom, ótimas descrições.
Nadia Coldebella disse…
Tô ansiosa aqui. Terps é msm uma assassina? Ou o povo para que a justiça seja feita? Haverá mortes, minha Lady Killer querida? Vai precisar de ajuda com os cadáveres?
Albir disse…
E aí vou eu andando pelo salão elegante de madeira escura e veludo verde, entre pessoas refinadas e bebidas caras, até que... piso numa poça de sangue e tropeço num cadáver!
Eh vida dura!
Zoraya Cesar disse…
branco - sempre generoso com meus textos e com o detetive sem nome.

Jander - ri muito com a oportunidade q vc criou com o 'make my day', ótimo!

Márcio - lembrar de Bullit e de Charles Bronson ao ler a história me envaideceu demais! O Steve McQuinn daria um ótimo detetive noir. E Charles Bronson, bem esse tem desejo de matar, certo? (Em tempo, nunca contratem o Márcio como vidente que veio do futuro. Suas teorias são mais furadas que 'táuba de tiro ao álvaro")

Whisner - valeu! se consegui fazer justiça à personalidade irônica (ou cínica), divertida do personagem, foi a glória.

Ana Raja - obrigada, Ana! espero ter feito vc entrar no cenário

Nádia - querida Amiga e Parceira e Cúmplice, claro q vou querer ajuda, sempre. Sabe que pode contar comigo também. Adubar a terra e dar comida aos peixes é nossa especialidade.

Albir - Dom Albir! Não é q vc me deu uma excelente ideia? E amei o desenrolar de seu comentário hehehehe. Mas veja o que é a imaginação exacerbada: 'ainda' nao tem sangue nem cadáver no salão...

A todos, muito obrigada!

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