O PRIMEIRO CONCERTO >> Carla Dias


O violoncelo tem sido sua companhia. Herança do bisavô, que recebeu o instrumento como pagamento de dívida de jogo e o manteve, durante anos, um enfeite de sala. Então, ainda menina, ela o conheceu, apaixonou-se por ele e aprendeu sua forma e som.

Nunca mais o violoncelo ficou sozinho.

Na adolescência, fazia apresentações curtas para a família, na biblioteca de casa. Seu talento era celebrado pelos pais e, às vezes, pelos irmãos. Quando parou de sair de casa, acharam que era peculiaridade de artista. Com o tempo, entenderam que era outra coisa.

Anos depois, ao decidir morar sozinha, teve de encarar uma viagem de meia hora para chegar ao apartamento, no centro da cidade. Pensou que fosse morrer, teve um ataque de pânico e os pais pararam o carro e a deixaram tocar, no meio da estrada. Um calmante e quase duas horas de música depois, eles a levaram para casa.

Viver sozinha não a incomoda. A tecnologia é amiga dos que precisam das entregas feitas em casa, evitando terem de sair. Incomoda-se com qualquer coisa capaz de bagunçar sua rotina, do zelador trazendo correspondência não esperada aos jogos de cartas promovidos pelos vizinhos. Os gritos agridem seus nervos.

O violoncelo a coloca nos eixos. Tocá-lo é entrar em contato com cada história não vivida no lá fora. Escreveu sua primeira canção na primeira noite que passou no apartamento. Pensou que a inspiração fosse também para as novidades. Almejou a liberdade de ir e vir, mas acomodou-se entre as paredes de seu lar. 

Consegue se imaginar caminhando pelas ruas da cidade, a qual admira da janela do quarto enquanto toca o instrumento. Apesar da peculiaridade do seu trabalho formal, a música continua a navegar pelo seu corpo, uma conciliadora dos seus sentidos e provocadora de emoções. 

Enquanto a irmã apresenta seu plano, ela toca as cordas do violoncelo com as pontas dos dedos, reconhecendo sua textura. A outra pede, uma tristeza gritante a acompanhar suas palavras, que ela prossiga somente se achar possível.

Pensa em como será para outros feito ela, os incapazes de sair de casa. Há dias enlouquecedores, mas aprendeu alguns truques para voltar a si, e então, perder-se na música para se reencontrar novamente.

A irmã lamenta a necessidade de fazê-lo. Roupa? Separada. Calmante? Comprado. 

Desde o dia em que o bisavô lhe presenteou, sonhava com o dia em que tocaria com uma orquestra no Teatro Municipal. Imaginava tudo, da chegada ao local ao final da apresentação e, então, aplausos. 

Engole o comprimido e pede à irmã para lhe vendar os olhos. 

É a primeira vez que sai de casa em vinte anos. Continua vendada, jeito que encontrou para não ser tomada por total desespero e a certeza de que irá morrer por ter saído de casa. A irmã a ajuda a se sentar em uma cadeira e lhe entrega o violoncelo. Ela deita a cabeça no corpo do instrumento, como se escutasse sua respiração. Então, posiciona-se e começa a tocar.

A plateia se emociona com a cena: ela vendada, sentada entre os caixões dos pais e tocando violoncelo, É cena de beleza dolorida. A violoncelista fez uma única promessa na vida, achando que jamais teria de pagá-la, e de uma só vez. 


Imagem © Stefano Ferrario por Pixabay

carladias.com.br

Comentários

Minesso disse…
Gezus, que cena e que história.
Ana Raja disse…
"É cena de beleza dolorida"...uau! Você acaba comigo. Que história linda e de um doer encantador!
Soraya Jordão disse…
Quantas dores nessa dor. Adorei!
Zoraya Cesar disse…
Carla, Carla, final surpreendente, trágico, inevitável. A pessoa que nao consegue sair de dentro de si, os olhos vendados para nao ver a tristeza bruta, a música salvando e ao mesmo tempo mantendo a prisão e são tantas leituras que a cada dia a gente leria de um jeito diferente. Isso é Carla Dias em estado lírico brutal e avassalador.
whisner disse…
Puxa, que pungente!
Nadia Coldebella disse…
Caramba Carla, que história! E que final é esse? De dilacerar o coração...
Albir disse…
Dolorido e belo, ou seja, um solo de violoncelo!

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