UM EREMITA APRECIA MÚSICA? >> whisner fraga

 


acumulo vergonhas, agora acho que mais, ainda,

dou exemplos: gosto de elepês, discos de vinil, mas frequentemente escondo minha simpatia pelas bolachas: até me indagaram, faz pouco, se eu escutava música no celular: claro, não foi bem este vocábulo, se falei em telefone foi para nos poupar de propagandas de aplicativos,

daí encavalou outro acanhamento: em épocas longínquas eu estudei acústica, no sentido físico, mesmo, equações diferenciais e companhia, e isso me ajudou a entender o som e, quando acontece de compreender algo, a gente sabe o que é bom e o que não presta, 

e música no celular não presta, mas não saio espalhando,

um long-play custa caro, isso quando encontro os que persigo, e é duro sair por aí contando esses caprichos quando tem tanta gente passando fome, morando em barracas, privados das cidadanias mais comezinhas,

daí que não conto,

depois os livros, gosto deles e também começam a ficar economicamente inviáveis, ainda bem que existem os sebos!, só que virou um negócio démodé prosear a respeito de literaturas, assim, no cotidiano e mesmo no varejo, supondo os poucos amigos com gostos similares, daí minha tendência à contemplação,

às vezes ao ascetismo:

lá se foram três encabulações, mas há outras e se reproduzem, sem pudor,

e sobre este aumento demográfico de embaraços, ilustro, igualmente: estava preenchendo um formulário para uma terapia e descobri que leitura e música podem ser vícios, a questão era bem límpida: você tem alguma dessas adições (marque um x): ( ) cigarro, ( ) bebida, ( ) etc., ( ) leitura, ( ) música, ( ) etc. ,

tendendo uma resposta (ou várias) para o lado repulsivo do termo, o que nem sempre um vício é, já está provado,

neste momento, eu, leitor, eu, ouvinte, senti um pudor tão intenso, comecei a me curvar, um receio até de respirar e estar roubando o ar de outro, continuei me dobrando, percebi umas pontadas no dorso, um tipo de casaco de penas brotando na pele, os dedos do pé se amalgamando em dois, apenas, as pernas afilando, o pescoço se esticando, uma vontade preocupante de achar um buraco e, nele, ajeitar a cabeça.


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imagem gerada no dall-e.

Comentários

Zoraya Cesar disse…
que excelente, Whisner! amei esse texto. temos vergonhas pequenas que se agigantam quando falamos sobre elas, até pq parece q as nossas não sao compartilhadas com ninguém. Me identifiquei demais e foi um prazer a leitura, como sempre. Não vire avestruz, por favor.
Ana Raja disse…
Whisner, amei seu texto. Me identifico.
Nadia Coldebella disse…
Acho que nossas vergonhas se juntam na medida que o tempo passa... Tire essa cabeça do buraco, meu filho. Estufe o peito e manda ver!
Albir disse…
Por um tempo insisti com os elepês, depois desisti. Mas dos livros impressos não abro mão.

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