LEITURA >> Carla Dias


O despertador tocou um alarme alto e irritante, você se levantou num salto, num susto. A cada três dias, você troca o alarme, porque não pode se acostumar com ele, senão se ausenta da tarefa de despertar.

Não fala consigo mesmo se encarando no espelho. Acha pessoa que faz isso deveras estapafúrdia. Fala consigo mesmo – e com o universo – o tempo todo, porque prefere ser estapafúrdio não somente diante do espelho.

Coando o café: para de pensar bobagem... 

No caminho para o trabalho: pensa em uma bobagem para aliviar a dureza do fato... 

Durante a insônia em véspera fim de semana: o mundo vai acabar, então, dane-se!

Durante uma ligação de telemarketing: tenho lista de afazeres pra cumprir antes de o mundo acabar, então, universo, vai com calma.

Ontem você assistiu a um filme de quase duas horas de duração, prestando atenção somente quando o coadjuvante entrava em cena. Havia algo nele que justificava deixar a televisão ligada: a elegância com a qual anunciava tragédias. Nem pareciam tragédias, mesmo o tal esmiuçando o ocorrido até fazer protagonista desesperar. 

Você sempre apreciou andamentos, para o bem ou para o complicado demais para ser totalmente positivo. Não acredita no totalmente positivo. Acredita que há uma armadilha nele, pronta para fazer mais estrago do que o benefício oferecido pela positividade.

Você acredita que olhar tem cadência e gosta de citar a euforia disfarçada de sabedoria dos que mentem para viver, ou para matar tempo, quebrar rotina, quebrar o outro, dar a volta em si. 

O alarme toca e você salta da cama, pronto para a rotina que mantém sua vida em ordem. A ordem do seu caos é um alinhar possibilidades com o seu direito de negá-las. 

Você gosta de observar a vastidão por um binóculo, jeito que encontrou de dominá-la, não permitir que ela o preencha com agonia. Mas também tem preferências... como costuma chamá-las? Mundanas: dormir no sofá até às 5h, arrastar-se até a cama às 5h30, levantar-se às 7h para se preparar para o trabalho. E as que lhe salvam da rotina: música espalhada pela casa, como se desfilasse pelos cômodos em sua busca. Alguém diferente de você para lembrá-lo de quem não deseja se tornar.

Um dia, distante demais do hoje para conseguir identificar no calendário, você passou horas em pé, ao lado da cama, depois de saltar dela e calar o alarme infernal. Acordou, mas não conseguia pensar por quais motivos. Não foi esquecimento; pausa prefaciadora de suspense. Importâncias acordaram amenas, quase esquecíveis. Problemas soaram maçantes, quase banais. Verbos foram descartados no silêncio. Calou-se em você o desejo, as urgências, os rompantes, as faltas.

Durou pouco, mas dessa passagem você herdou um misto de inquietação e passividade, e passou a se dedicar a evitar pensar no coadjuvante, temendo que ele lhe dissesse o que você já sabia, durante uma conversa de persuadir verdade a ser menos desinibida. 

Coadjuvantes, não? Quando dão de roubar o papel do protagonista, desancam as certezas.

Você passa pela vida como se não tivesse propósito, mas o tece, dia após dia, com a delicadeza dos que ignoram por escolha, porque são incapazes de ser indiferentes. Apega-se aos vãos, onde se sente mais tranquilo para navegar ideias, desejos, amparos. Habita a distância na qual esparrama fragmentos de presenças, afinal, todos precisam de um bom álbum de fotografias imaginário.

Você sabe que os pés no chão nem sempre garantem que a cabeça evite as nuvens.  E, às vezes, melhor assim; ser em camadas, agir em dimensões, correr em vez de paralisar. 


Imagem © Cdd20 from Pixabay

carladias.com.br

Comentários

Nadia Coldebella disse…
Seus textos as vezes me lançam num vácuo. Neste, fiquei com a sensação de que olho pelo retrovisor e não vejo, porque achei o ponto cego...

Albir disse…
Que beleza, Carla! Você narra um fragmento de rotina, e a gente se encanta.
Zoraya Cesar disse…
Princesa das Palavras, esse é daqueles q faz a gente entrar em si mesmo e se perder e se achar, e se perder, e se achar, e se perder e torcer para termos jogado miolinhos de pão pelo caminho. Texto incrível.

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