UMA HISTÓRIA PARA O DIA DOS NAMORADOS UM TANTINHO MACABRA, MAS FOFINHA >> Zoraya Cesar


Na loja de Ayabhá frequentava todo tipo de público - humanos, elementais, ventos, mulas sem cabeça, sereias, elfos, sacis... – todos querendo feitiços de prosperidade, magias para recuperar poderes, rituais de vingança, destruição e banimento, quebrantos, cura, falar com antepassados, adivinhações. Mas a maioria queria mesmo era falar de amor.

E, em homenagem ao dia dos namorados, passo a contar o dia em que a feiticeira Ayabhá mais aprendeu que ensinou.

Mas, antes, claro, vamos às apresentações. Ayabhá abraçara feliz a missão de servir. Nem todos os descendentes da grande feiticeira voodoo Grann Sòsyè tinham o dom ou a vontade de trabalhar com magia. Ayabhá viera ao mundo com ambos.

E, sejamos realistas, o dinheiro era bom. O dinheiro, as galinhas, os talismãs, segredos de família, livros, ervas, cogumelos, pó de lua, caderno de receitas culinárias, raspa de tacho, tudo o que existe é riqueza para quem sabe como aproveitar.

Mas essa é uma história de amor. Vamos a ela.

I – Te dou um pedaço de mim

A mulher era enorme e gorda, mas, estranhamente, passava com facilidade em qualquer lugar, por mais estreito que fosse. Elegante, em seu tailleur magenta fosforescente com botões de madrepérolas, e o andar lépido com seus altos escarpins. Em seu semblante meigo, os olhos eram como violetas no crepúsculo. A sedosa barba anelada em tom castanho quente ia até o umbigo. Que mulher bonita, pensou a feiticeira. Ayabhá amava circos, trabalhara em um quando jovem.

- Em que posso ajudar?

A mulher cofiou a barba, uma cabeleira macia e sedosa, que mostrava o zelo de sua dona.

- Quero doar minha barba para meu amado, o Anão. Ele é careca e imberbe e sofre muito, o coitado. Além disso, é uma forma de estarmos sempre juntos, entende?


Ayabhá entendia perfeitamente.

O procedimento era doloroso, explicou a feiticeira enquanto passava um unguento anestésico de morcego vampiro. Em pagamento pelos cabelos que seriam colados para sempre no corpo do amante, e por uma loção de babosa agonizante, perfeita para fazer crescer barbas em mulheres, pediu que a cliente derramasse nove lágrimas violeta em um vidrinho enquanto os pelos eram arrancados.

II – Todos querem um mozão pra chamar de seu

Ele entrou meio ressabiado, olhando para os lados. Tinha longos cabelos vermelhos, dentes verdes e pés

voltados para trás. Era imensamente forte e gentil. Ao ver Ayabhá arrastando um pesado caixão escada acima, pegou-o com facilidade e colocou-o no lugar (o defunto agradeceu mentalmente, já com enjoo de tanto ser chacoalhado).

Assobiou timidamente, será que conseguiria se comunicar? Perfeitamente, respondeu a feiticeira, uma poliglota nata. Bastava se conectar à energia de qualquer criatura para saber o que falava. Uma questão de empatia e vibração.

Assobiou de volta, em que posso ajudá-lo?

- Estou cansado de ser sozinho, não consigo encontrar uma companheira. Você tem magia para isso?

Se ela tinha alguma magia para isso? Hahaha, pois se era uma das especialidades da casa, o amor! Claro que sabia feitiços e sortilégios para banimento, estraga vidas, controle de espíritos, viagens astrais e infernais, riqueza, sucesso, saúde, afasta mau olhado e eguns, mas trabalhar o amor era a sua preferida.

- Que tipo de amor? Que não seja imortal, posto que é chama? Mas que seja infinito enquanto dure? – Depois de várias perguntas, encarou os olhos flamejantes do cliente e deixou claro:

- A magia vai atrair alguém – ou algo – compatível e que esteja procurando o mesmo tipo de amor. Mas se vai vingar ou fenecer, só depende do esforço de vocês.

O Curupira aceitou os termos. E pagou com mechas de seus cabelos vermelhos pôr do sol incandescente.

III – Amarração de amor? Sei fazer. Mas não faço não.

Era miúda e diáfana, e, não fossem seu cenho franzido e o ricto de ódio em sua boca, seria uma das Náiades mais bonitas que Ayabhá já vira.

Vestia-se de água de rio, no qual pulavam peixinhos cor de noite sem lua e sem estrelas. Ao andar, produzia o som de leves marolas batendo nos seixos.

- Em que posso ajudá-la?

Por entre os lábios cerrados, a cliente explicou que seu namorado a abandonara por uma ninfa da montanha. Ela queria destruir a vida da Oréade e trazer seu amado fauno de volta, amarrando-o em um feitiço.

Muito raramente, Ayabhá aceitava esse tipo de trabalho. Dependia de sua necessidade financeira; de seu humor; e da afinidade com o cliente. Esclarecia pormenorizadamente os graves e deletérios efeitos colaterais do serviço. Se, ainda assim, o solicitante quisesse fechar o negócio... bem, ele que arcasse com as consequências cármicas. E, afinal, negócios são negócios.

No momento, Ayabhá não precisava de nada, seu humor estava azul e ela sentiu pena. Não iria estragar a vida da Náiade cedendo à demanda.

Ofereceu-lhe chá de salgueiro, para confortá-la. Os peixinhos começaram a clarear para um suave tom de lavanda.

Pacientemente, explicou que um feitiço de amarração contrariava as Fiandeiras do Destino, principalmente Lachesis, e, como todos sabiam, as filhas de Nix eram vingativas. Por que, perguntou a feiticeira, oferecendo um pedaço de ambrosia, em vez de amarração, não fazia um feitiço de olvido, para esquecer o fauno traidor e seguir em frente?

Acalmada pelo chá, adocicada pela ambrosia e meio hipnotizada pela voz cadenciada e suave da bruxa, a ninfa aquiesceu, o coração partido menos dolorido. Em pagamento pela poção feita à base do Rio Lete, o rio do esquecimento, Ayabhá pediu alguns dos peixinhos, que agora nadavam animadamente, multicoloridos.

 IV – Amor. Esse esquisito.

Ao final do dia, Ayabhá fechou a loja, subiu para seus aposentos, tomou um banho e colocou sua roupa de ritual: uma túnica preta e um colar de cristais de quartzo.

A mesa estava posta. Uma terrine de jambalaya e um bule de café brulôt. Uma tulipa vermelha. E ele.

Sempre ele, toda noite, havia dois anos. Desde que seu amado morrera em batalha e Ayabhá o conjurara dos mortos para a vida.

A uma meia vida, na verdade, pois ele não estava morto, mas também não estava vivo. Um quase esqueleto, que lembrava apenas vagamente o bravo guerreiro que fora. Da sua vida na Terra, restaram os olhos cor de aço e o amor por Ayabhá, que o mantinha ligado nessa dimensão.

- Trouxe algo pra você – a voz do semiesqueleto era terrosa e etérea ao mesmo tempo. E apontou para uma corda de enforcado e um frasco contendo terra de cemitério.

Ela pegou os presentes e levou-os ao coração.

- Também trouxe algo para você. Para nós, na verdade. – e empurrou uma caixa na direção dele, que a abriu lentamente, intuindo o que significava. Não se enganou. Mas se emocionou. O amor deles era tão profundo.

Na caixa, uma apara de unha e uma mecha de cabelo dele quando vivo, uma vela roxa, um cristal de luz da lua cheia, uma chave para o portal que separa os vivos dos mortos, um miosótis, e um pedaço do coração dela.  

Incrustado na tampa da caixa, um sortilégio de libertação. O presente de Ayabhá para seu amado: que seguisse o caminho que os deuses haviam traçado para ele.

Ela percebeu que aqueles três clientes tinham algo a lhe ensinar, e uma boa feiticeira sabe ler os sinais. E sabia que seu amado jamais pediria para partir, por mais que quisesse, para não deixá-la sozinha.

- Tem certeza? ele perguntou. Você vai ficar bem? - Ela assentiu. O morto-vivo, de pé, esperou que sua amada fizesse o ritual que o libertaria daquela semivida, quase morte.

Ayabhá começou, a voz firme, sem lágrimas, sem hesitação. Queimou todo o conteúdo da caixa e selou-a com a cera quente da vela. Seu amado jamais pisaria na terra dos vivos novamente e nenhum espírito errante poderia capturá-lo. Já deveria ter feito isso há tempos. Na verdade, bem sabia que jamais deveria tê-lo chamado de volta.

O fato de ter poder não significa que se deva exercê-lo, ensinara a velha Grann Sòsyè.

Antes de desaparecer definitivamente, ele disse ‘obrigado’.

A feiticeira comeu a jambalaya feita pelo marido, tomou o café e esperou o dia amanhecer. Estava feliz.

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Uma história para o dia dos namorados, um tantinho macabra, mas fofinha - bem, o título já diz tudo. Mais que isso seria spoiler

Comentários

branco disse…
"...estava feliz."
esse final, ah...esse final.
Marcio disse…
Que texto perfeito!
E, mesmo quando a Zoraya não mata nenhum personagem, ela ao menos deixa que um deles morra por completo.
Nadia Coldebella disse…
Querida Lady

Vc está bruxescamente romântica nessas historinhas, que são macabramente fofas.

Amei cada pedacinho, porque amor é isso. Pura filosofia, como ensina o Jack: por partes.

E você transcende, com uma grande lição no final: o amor verdadeiro é verdadeiro até na morte. E um feliz para sempre também pode ter sua cota de cadáveres, meio vivos meio não.

Isso me inspirou e eu mandei uma pá na sua casa, que é pra vc ter um maravilhoso dia dos namorados e se enterrar de amor (hahaha, essa foi horrível!).

Gde bjo!
Anônimo disse…
Zoraya tem o poder e o exerce nos divertindo com histórias tão cativantes😘
Que seja infinito enquanto dure
Antonio Fernando disse…
Ah, minha amiga querida.
Leio sempre o que você escreve, sou seu fã, você sabe disso.
Mas tenho que confessar: há tempos um texto seu não me tocava tanto.
Muito obrigado por compartilhar tanto sentimento num sábado pela manhã. Meu dia já estava bom, porém acabou de melhorar. Que Deus continue inspirando sua caneta e abençoando sua vida
Jander disse…
Com todo o conhecimento de mitologia grega que o God of War me deu, tive um carinho especial pela parte III. Mas eu ri mesmo quando o defunto agradeceu mentalmente. Notas de Neil Gaiman no contexto, misturadas a uma personalidade todinha sua. Mandou bem, Zoraya!
Anônimo disse…
A morte que libertou o amado!
Interessante!
André Ferrer disse…
Mágico, o seu texto. Síntese do papel da magia na História humana, enfim, na cultura. A parafernalha da magia é necessária apenas para esconder a essência. Para impressionar a assistência. Ela é dispensável e, de fato, a realidade se impõe a ela, quando uma essência é considerada. Neste caso, uma caixa cheia de objetos simbólicos nada significa além de: desapego. A magia é mãe da ciência e irmã da poesia.
Ana Raja disse…
Adorei o seu texto, Zoraya. Cativante. Me prendeu do início ao fim.
Parabéns!
sergio geia disse…
Deus, Zoraya, quanta inspiração, criatividade e estilo! Você é única.
Albir disse…
Um texto fofo para o dia dos namorados! O namorado é um semiesqueleto, o presente é corda de enforcado e terra de cemitério! E que diabos é uma babosa agonizante? Tenho medo de um dia ficar preso num texto da dupla Nádia e Zoraya, e nunca mais voltar.
Zoraya Cesar disse…
branco - lord white - esse seu comentário, ah, esse seu comentário...

Márcio - fico bem feliz, sei q esse não é seu tipo de história. Ahahaha, pois é, difícil escapar de matar alguém, né?

Nádia, Countess Velvet - HAHAHAAH, pois assim q a pá chegar eu te aviso, pra ir ligando o carro... E que bom q a história alcançou seu romantismo. Sim, amor verdadeiro é isso. E aquilo

Anônimo - muito obrigada! E amém!

Antonio Nando - você e suas palavras gentilíssimas e abençoadas. Muito obrigada, amém, amém

Jander - hahaha, God of War foi ótimo! kkkk. Desconfio q vc sabe bem mais de mitologia grega do que quer revelar. Ahhhh, Neil Gaiman!? Como adivinhou? Adoro! Muito obrigada!

Anônimo - bem, não foi bem a morte que libertou o amado. Foi o amor. Morto ele já estava. Meio que.

André Ferrer - dizer q meu texto foi mágico significou muito para mim, obrigada. Agora, eu amei isso aqui: "A magia é mãe da ciência e irmã da poesia.". Demais!

Ana Raja - ahhh, q bom! obrigada mesmo.

Sergio Geia - ahhh, prosador das pequeninas coisas, muito obrigada!

Dom Albir - HAHAHAHAHAHAHAAHAHA, ri demais aqui! E não se preocupe, a Condessa e a Lady Killer tratarão bem de você. heheheh Ah, sim, vc nao vai querer saber o que diabos é uma babosa agonizante. Mas ao usar o 'diabo', vc já intuiu..
Érica disse…
Adoro finais felizes, mesmo quando você mata os mortos hehehe

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