DESCANSE SUA PRESSA NOS BRAÇOS DA MINHA PRESENÇA >> Carla Dias

Posso ser pouco, menos até do que você imagina. Rastejar pelas vielas da solidão, como se fosse ladrilho solto, chutado por passos largos, arrastada pelos enganos conduzidos — por um maestro adepto da polirritmia — ao covil das urgências inventadas.

Quem sabe eu seja insuficiente aos seus departamentos, incapaz de resolver o imediato na cadência dos seus desesperos. Uma folha arrastada pelo vento até o bueiro que vai dar em destino não escolhido.

Às vezes, eu me enxergo do mesmo jeito que seu olhar sugere: um avesso, o outro lado da rua, a inequação, a canção indigesta — de autoria de verdades aflitas, quem atende somente às predeterminadas situações.

Percebe que a dedução sobre o somente nos priva do provável encontro com o diferente? Ele que tem como objetivo nos tirar da rotina gestada pelo óbvio e armadilhas que criamos para nós mesmos?

Mas eu sei que o diferente o fascina. No entanto, ele nos chega incompleto quando o observamos à distância. Há mérito em nos aproximarmos dele, observar suas qualidades, compreender suas fissuras, porque bonito é o diferente que nos acolhe.

Você pode até desconfiar do que lhe digo, mas houve vez em que enxerguei, na respostas do seus gestos, a compreensão sobre essa faceta da liberdade. E seu olhar sorriu... ele não é disso.

Mas tem espaço para se tornar.

Tornar-se é jornada que vai além do planejamento. Penso nisso quando coordeno meus afazeres: descobrir como sobreviver a mim diante do espelho das gasturas, formas, ideais; cuidar do almoço, das contas, responder mensagens recebidas no celular, mas especialmente as que sussurram nos meus ouvidos.

Talvez a busca de mim desague feito impopularidade diante de você, porque sei que remexer as gavetas de si mesmo é algo que o assusta.

Eu sei que posso ser pouco, menos até do que você acredita. Mas aprendi a identificar quando ainda há lugar para mim em uma história. Aprendi a nunca partir antes do fim.

É ali, nos braços de alguns fins, que brotam começos. Enquanto ele não chega, descanse sua pressa nos braços da minha presença.

Imagem © Ana Helena Reis

Comentários

Soraya Jordão disse…
Profundo, intenso, pulsante.
Milton Rezende disse…
texto muito bom da Carla
Minesso disse…
Mandou demais, como sempre. E ainda bem que nos braços dos fins brotam novos começos, mesmo.
Nadia Coldebella disse…
É um texto intenso. Mas me deu certa tristeza ao chegar aqui: "sei que posso ser pouco...". Doeu mesmo!
sergio geia disse…
Prosa poética para expressar esse vasculhar por dentro.
Carla Dias disse…
Soraya, Milton, Minesso, Nádia e Sergio, todos escritores que sabem o que escrevem, só posso agradecer a leitura e os comentários. Obrigada pela companhia durante as minhas viagens. Beijos!
Zoraya Cesar disse…
Carla, Princesa das Palavras, já começou com um título matador. Foi um dos que mais amei. Já começa pegando a gente pelo pescoço e nos arrastando para a profundidade das emoções que nao queremos ver.
Talvez eu esteja cansada, ou obtusa, pois, lendo os comentários, percebi q só eu dei uma leitura diferente. Li como se o narrador estivesse falando para um amor que está de corpo presente, mas não com a alma, só que ele ainda nao sabe. O narrador sabe, e, tristemente, deixa esse amor ficar ali, até que esteja preparado para ir ou ficar. Delírios. O que importa é que amei seu texto. Como se isso fosse novidade!
Carla Dias disse…
Zoraya, Zoraya... Obrigada pela leitura. E você fez uma boa interpretação do texto.

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