DOCE FÁBULA DE UMA TRAIÇÃO >> Sergio Geia

 


Desde que Antônio conheceu Camila, ele sonhava com aquele dia. Não queria se amarrar, mas com ela foi diferente. Nas baladas, era comum ficar com uma ou outra, uns amassos, terminar a noite num motel às vezes, mas depois, não queria saber. Um amor destruído por picuinhas fechara a sete chaves o seu coração. 
 
Mas aí Camila apareceu, meiga, doce, Antônio não aguentou. No começo, até que tentou resistir, dizia a seu coração como se diz a alguém, como se ele fosse gente que nem eu, você, e ouvisse, deixa disso, você sabe como funciona, não entra nessa. Tentou dominar o sentimento (e sentimento se domina?), controlar o ímpeto da paixão, mas aqueles olhos de mel, a pele branca igual neve, os cabelos quase ruivos, bom, você deve saber. 
 
Passaram-se quase dois anos de namoro calmo, como uma tardezinha de domingo, mas também quente entre quatro paredes, e Antônio tratou de ir à casa de João, o sogro, e pedir a mão daquela que escolhera para acompanhá-lo por toda a vida. 
 
João era homem rústico, criado na roça, que vivia do pequeno sítio que possuía. Vendo chegar aquele mocinho da cidade, todo mauricinho, gel no penteado, perfume, carro moderno, ficou apreensivo. Mas educado sempre foi, e não tratou mal o sujeito escolhido pela filha, ainda que com reservas. 
 
Mais tarde, percebeu quão justo é o ditado que diz que as aparências enganam. Conhecendo mais de perto o pretendente, logo se encantou com a natureza morna do rapaz, respeitoso, educado, e — o mais importante —, estava conseguindo pôr um freio na filha, coisa que jamais conseguira. Ela, que cismara com um tal de Pedro Salustiano, filho de um fazendeiro da região, agora parecia encantada com aquele moço da cidade; até sossegara um pouco, e, comparando os dois, ele via com clareza que o rapaz da cidade tinha mais aptidão para fazer a filha feliz. 
 
Decorrido um ano do dia em que a filha apresentara o namorado ao pai, decidiram todos, noivo, noiva, pais, mães, irmãos, irmãs, cachorro, gato, periquito, papagaio e coisa e tal, que chegara a hora de marcar o casamento. João, feliz pela escolha da filha, cedeu o sítio para a cerimônia e festança. 
 
O vilarejo se animou. O pai da noiva mandara convidar a roça toda (você sabe como é festa na roça), comprou chope, matou uns bois, contratou gente para assar a carne, até dupla caipira ele chamou. Preparou uma grande festa, a noite era convidativa, apesar do frio que desce nervoso depois que o sol se põe. Ouviam-se rojões, balões passeavam no céu, a criançada soltava bombinha, uma enorme fogueira foi acesa. 
 
Ocorre que na hora marcada para a cerimônia a noiva não apareceu. Quem apareceu foi João, sozinho, macambúzio, sem saber o que dizer. Procurara em todos os cantos da casa, a cabeleireira jurava que a tinha deixado pronta. Mais tarde, um vizinho pra lá de Marrakesh disse tê-la visto na garupa de uma moto, vestida de noiva, agarrada a Pedro Salustiano. 
 
A noite terminou com João consolando Antônio, que bebeu como nunca. Dizem que até desmaiou e foi levado às pressas ao hospital (coma alcoólico?), mas sobreviveu. 
 
Depois veio a confirmação: Pedro realmente fugira com a noiva. 
 
Camila hoje mora no Rio, é atriz, solteira, mãe de duas ruivinhas adoráveis. 
 
Antônio estudou agronomia, mas não chegou a se formar. Hoje vive em Amsterdam, casado com uma holandesa, com dois filhotes também ruivinhos; dizem que tem um bar nas proximidades da Red Light District. 
 
Pedro sumiu pelo mundo, ninguém sabe dele. 
 
 
P.S.: 1. Essa história bobinha, mas secular, agora aberta a fórceps, e reciclada, foi a forma que encontrei para saudar este junho frio e chuvoso que chega carregado de festanças. 2. Essa crônica foi publicada originalmente no Crônica em junho de 2018 e faz parte do meu livro de crônicas “folha vadia”; hoje, revisada, integra o projeto “Crônica de um ontem”. Viva São João! 3. Ilustração: Pixabay

Comentários

Jander disse…
Passei a vida querendo saber o nome da noiva. Obrigado, Sérgio. E obrigado também pelo maravilhoso e contemporâneo olhar sobre o mais clássico dos clássicos brasileiros.
Nadia Coldebella disse…
Eu fui lendo e me lembrando dela. Até torci por um final feliz entre Antônio e Camila, mas como vc diz, precisamos de um clássico pra abrir o mes junino. Só não entendi porque a história foi arrancada a fórceps, ela parece tão fluida...
Zoraya Cesar disse…
Bom, no final das contas, o final foi feliz pra todo mundo, menos pros pais da noiva e do tal salustiano, q ficaram sem os filhos e sem netas e ainda passaram vergonha na frente dos vizinhos.
Agora, tanto as filhas de Camila qto as de António são ruivas? Estranho e misterioso. Conta o resto da história, Sergio! E assim nos dá oportunidade de ler mais a sua gostosíssima prosa!

(em tempo, concordo com a Nadia, nada parece arrancado a fórceps aqui! Ao contrário)
sergio geia disse…
Jander, meu caro, não foi fácil descobrir esse nome. Ela é conhecida como a filha de João, um absurdo. Fui atrás. Investiguei. Não foi fácil. Mas descobri o seu nome e o seu paradeiro rsrs Obrigado mais uma vez.

Nádia, fluida sim, mas pra chegar nessa fluência... Tudo era muito superficial. Depois de conversar com muita gente, consegui outros detalhes desse casamento frustrado rsrs. Grato, amiga!

Zoraya, Zoraya. Até então me disseram que a holandesa com quem Antonio se casou era ruiva. Hum... Sei não... rsrs Obrigado, amiga

Albir disse…
Que beleza, Sérgio! Não deixe de nos contar se souber mais alguma coisa sobre esses personagens.
sergio geia disse…
Grato, caro Albir. Acho que irei vasculhar mais para ver se descubro rsrs

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