QUARTA-FEIRA É O PIOR DIA DA SEMANA >> whisner fraga

 


primeiro acordar às quatro e meia, uma afronta à natureza humana,

e terça encravada no meio de insignificâncias, sem mostrar a que veio,

não bastasse a notícia ruim: um processo que não meteu medo em ninguém e as custas, a humilhação, a injustiça segundo conceitos irrecuperáveis, o chute rasteiro em cachorro morto, favas contadas,

segunda, apesar da ressaca do fim de semana monótono e relaxado, era segunda, nostalgia do fantástico nos anos 1980, o sorvete,  a modorra, novamente,

domingo é prostração,

segunda-feira é a inimiga número do trabalhador, acho que isso resume,

então só se pode ser feliz neste dia ao crepúsculo, com música e a possibilidade de que ninguém se lembre da terça,

porque terça-feira é dia de de madrugar,

sábado tem a praça benedito calixto e, tirando o trânsito cada dia mais inurbano, tem os vinis, ainda que a preços despóticos,

mas não se compara à quarta,

ainda que terça, durante a sessão lava-louças eu tenha partido um prato, resultando num talho na mão direita,

o corte, em si, tirante a questão do deslocamento (que não fiz) até o pronto-socorro, foi o de menos, a dor, também irrelevante,

afora igualmente o trabalho que dei à ana e à helena, o desgosto maior foi saber que o golpe havia se alojado na mão direita, a que uso para escrever, me levando, portanto, a pausar um romance promissor,

as crônicas digito, uma tarefa indigna para meu raciocínio calibrado pelo cilindro da caneta, mas suportável, se focar na balança de prós e contras,

além disso, a quarta é um oco: por um lado longe do abatimento da segunda, por outro distante da esperança da sexta,

embora sexta-feira não seja parâmetro: em geral me acho moído pela lida hebdomadária, aniquilado por cobranças, estresse, invejas, vaidades, perseguições, desprezos, vinganças e outras barbáries corriqueiras, nocauteado pelo sangue empregado nos compromissos,

quando aproveitamos o sábado para colocar o sono em ordem, mesmo que ele não vá se aprumar nem com uma hibernação impossível,

mas só de ter a fantasia de um sonho anarquista, a vida se torna mais significativa,

a priori os dias são invenções, 

e coisa nenhuma se compara à noite, a todas as noites em que podemos nos sentar e partilhar essas angústias, transmudando-as, se possível, em pequenas ironias, em mínimos e crescentes contentamentos, como se a essência de tudo desembocasse nessa comunhão inadvertida e necessária,

nestes momentos nos tornamos humanos.


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imagem: dall-e

Comentários

Lady Killer disse…
Nem sei o que dizer, Whisner, dessa descrição tão perfeita dos nossos dias da semana, e como você mesclou com maestria os acontecimentos cotidianos com a novidade do processo, com o peso que carregamos só aliviado à noite, e nem sempre. Cada vez mais me espanta esperarmos tanto pelo fim de semana, qdo ele é exatamente isso: o fim de mais uma semana, menos uma semana na nossa vida. Num dá pra ler isso no domingo à tarde não, cara. Ainda bem que escapei disso.
sergio geia disse…
Belo retrato mesmo desses dias. E como está difícil encontrar um respiro, Deus!
Jander Minesso disse…
Falou tudo, Whisner. Quartas são tipo a Ilha de Páscoa: um pedacinho de agora cercado por semana em todos os lados. Mas enquanto houver noite, há esperança.
Albir disse…
Muito bom, Whisner! Eu não consigo manter algum padrão. às vezes a segunda parece sábado, e o domingo parece sexta-feira treze. Mas já não busco organizar.
Petit Artiste disse…
Teve trecho que deu vontade de chorar. E outros mais ainda. Crônica que foi para um caminho que não se esperava pelo título.
Nadia Coldebella disse…
Pensei como o Jander.
Quarta é como o Cabo da Boa Esperança: indica a guinada rumo ao final da semana, mesmo q angústia persista até sexta e volte no domingo a noite.

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