PAZ E AMOR, BICHO! >> Albir José Inácio da Silva

 

– Paz e amor – ele disse.

Sentada no meio dos escombros ainda fumegantes, Tereza levantou a cabeça mas continuou de costas.

Luiz não sorria, mas sua voz era firme, sugerindo uma tranquilidade reforçada ainda pelos dois dedos levantados na saudação hippie.

Hippie que só agora conseguia ser, embora intimamente sempre o tivesse sido. Acreditava nos cabelos e barbas, nas comunidades, em sexo, drogas e rock’n’roll. Acreditava na paz e na contemplação.

No ano anterior devorou revistas e jornais sobre Woodstock, três dias e três noites no paraíso. Isso sim é que era vida. No Brasil os jovens só queriam saber de apanhar da polícia, fazer greve, ser torturados, sequestrar. Onde estava o amor? Onde o “make love, not war” que se gritava na Europa e nos Estados Unidos?

O problema é que ele era bancário. Nem jeans desbotado e camiseta podia usar. E ainda havia a maldita gravata, que ele colocava e tirava na frente do porteiro “e de quem mais quisesse ver”, numa rebeldia a que ninguém prestava atenção. Porque eram poucas as rebeldias a que tinha direito. Ainda mais depois do AI-5. Qualquer caminhada em grupo de madrugada podia ser confundida com subversão.

Tereza, ao contrário dele, até que conseguiu sentir o gostinho da liberdade. Estudante, jeans, camiseta, maconhazinha pra relaxar, sexo mais ou menos livre, mais ou menos culpado, mais ou menos  ruim.

E foi assim que se encontraram. Ela na escadaria da Faculdade exercendo toda a sua hippisse. Ele, em frente ao Banco, gravata enrolada na mão e palito na boca, olhando aquele bando de estudantes na paz e no amor. Todos os dias. E se falaram, e se gostaram, e se casaram, apressados pela família, antes que a barriga deformasse o vestido de noiva.

Naqueles tempos bicudos, rebeldia tinha consequências. Erros nas contas, atrasos e opiniões contrárias ao sistema, aliados ao milagre econômico que já fazia suas vítimas, acabaram por colocar Luiz no olho da rua.

Grávida, Tereza abandonou a faculdade e montou, na sala da casinha construída no terreno dos pais, uma lojinha de artesanato. No início acorreram amigos, que não compravam nada, mas traziam violão, flauta e alguma erva – que sem ela não se reuniam. Os vizinhos chamaram a polícia e por pouco a loja não foi fechada.

Hippies não compravam nada. E o restante da população não comprava nada que fosse hippie. Com o desemprego do marido, Tereza fez adaptações na decoração e foi substituindo incensos, maricas e colares por vasilhas de plástico e outros utensílios domésticos mais ao gosto das vizinhas.

Tudo isso para desespero de Luiz, que agora podia ser hippie em toda a sua plenitude e, a pretexto de conseguir mercadorias, viajava nos finais de semana, apesar dos protestos de Tereza. Seguia por praias e serras com os companheiros de ócio, cerveja e baseado, assistindo ao pôr-do-sol, tomando banho em cachoeiras e visitando fazendas.

Trazia ferraduras, plantas exóticas, carrancas e outras bugigangas, que disputavam espaço com os objetos que Tereza vendia e que eram a única fonte de renda. Como Luiz não tinha dinheiro, Tereza desconfiava que ele roubava aquelas quinquilharias. Mas isso nunca se provou.

Enquanto isso, a barriga crescia, o dinheiro mal dava pra comida, e a luz foi cortada. Tereza acendeu uma vela e saiu para um prato de comida numa casa próxima. Foi de lá que viu o fogo. Correram todos, mas quase tudo era plástico e em minutos estava acabado.

Tereza aceitou o convite pra dormir na vizinha. Iria depois. Sentou-se no meio da fumaça e ficou pensando na vida e mexendo num rádio de pilha que tinha escapado do incêndio. Depois de um ruído, Roberto Carlos atacou de jovem guarda.

E foi aí que deixamos os dois. Luiz chegando de mais uma viagem:

– Paz e amor, – repetiu ele tentando animar. – Não liga não, Tereza, nada disso valia mesmo grande coisa.

Tereza segurou pelo cabo um marcador de gado, que Luiz trouxe das viagens e estava sobre uma madeira ainda em chamas. Ele continuou, confiante e sarcástico, camisa aberta no peito:

– E um foguinho destes não é motivo pra você ficar aí escutando essa música alienada.

Ouviu-se um chiado quando o carimbo de ferro encostou na barriga de meditação e cerveja, quase tão grande quanto a de Tereza. Ele abriu a boca surpreso e, antes que pudesse gritar, ela falou baixinho, quase num sussurro:

- É uma brasa, mora?


Obs: Este texto integra o Projeto CRÔNICA DE UM ONTEM e foi publicado originalmente em 30/01/2012.

Comentários

Minesso disse…
Muito bom, Albir! Foi cozinhando a história sem pressa, ao mesmo tempo em que trouxe muita coisa num espaço curtinho. Construiu os personagens, transformou os ditos cujos e fez tudo isso com um temperinho de sarcasmo maravilhoso. Obrigado por dividir este texto com a gente.
Zoraya Cesar disse…
uauauauaaua, eu meio q lembrava desse. Bem escrito DEMAAAAIS. A construção e desenvolvimento dos personagens, as trocas de papeis, o final redentor. Como nao amar?
Ana Raja disse…
Bom demais, Albir! Passiei pelas cenas desenhadas com talento que você construiu.
Nadia Coldebella disse…
Ah, que pena vc não ter sido entrevistado no Crônica Falada! Esse é o texto perfeito pra eu explorar esse seu jeito de escrever tão peculiar, esse sarcasmo refinado, a raiva aquietada, querendo despertar.

Gostei muito dessas idas e vindas, desse círculo que conduz ao mesmo ponto do início, só que agora o leitor tem uma opinião totalmente diferente daquela do início. A gente até gosta da brasinha, acha que foi cruel, mas merecida também!

Considerando que tantos anos se passaram, é interessante ver como sua escrita é consistente e cheia de estilo.

Mas veja. Caro Dom Albir, essa gotinha de sadismo me faz pensar muitas coisas... De repente temos um Dom Killer encoberto, sufocado! Deixa esse mostrinho interno se libertar, meu filho!!!
sergio geia disse…
Que prazer ler esse conto, Albir

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