FAIXA PRETA DE “Ó SE EU QUISESSE” >> JANDER MINESSO


Quando eu era mais novo, me achava um gênio da escrita. Um Machado de Assis contemporâneo, uma Virginia Woolf lusófona, um Hemingway do hemisfério sul. Na minha imaginação, era só questão de tempo até que o mundo conhecesse e reconhecesse a poesia escorrendo dos meus dedos. Meus livros venderiam mais do que Como Fazer Amigos e Influenciar Pessoas. Hollywood pagaria fortunas para transformar minhas histórias em filmes. A cada lançamento, a Marília Gabriela me chamaria para uma entrevista inteligente (porém despojada), que bateria recordes de audiência. Era ótimo. E o fato de que eu gastava mais tempo fantasiando do que escrevendo era só um detalhezinho de nada. Meias histórias, eu tinha várias. E isso não me incomodava. Se a Poética acaba no meio e se O Castelo não tem final, qual o problema em deixar umas pontas soltas?

Mais tarde, por um misto de sorte e insistência, comecei a ganhar a vida escrevendo e ainda o faço. Crio roteiros para programas de televisão de qualidade duvidosa. Escrever no mundo do audiovisual, ao menos na minha experiência, é um processo exaustivo e, dependendo do cliente, com pouco espaço para experimentações. Talvez seria diferente se eu partisse para a ficção ou para os documentários ao invés de tripudiar na lama dos reality shows. Mas quase todo mundo tem boletos para pagar e me incluo neste grupo.

O que quero dizer é que fazer roteiros para programas de TV é diferente de escrever. Perdoem-me os amigos do front de batalha, mas lá a gente não coloca o rabo na reta defendendo um ponto de vista, uma ideia ou uma história. Às vezes, até acontece. Mas boa parte do tempo, os desafios oscilam entre atender demandas irreais em tempo recorde e encontrar maneiras diferentes de dizer “não sai daí, o nosso programa já volta.” Então, mesmo trabalhando com palavras, durante quase toda a vida adulta meu delírio de escritor foi só um delírio, mesmo. E assim fui vivendo: sonhando muito e escrevendo pouco. Um faixa preta na arte do ó, se eu quisesse.

Estava tudo bem, até que uma amiga me convidou para colaborar com um site de cronistas. A premissa era simples: vários escritores se intercalando no ofício de subir todo dia um texto novo no site. Uma crônica a cada duas semanas por cabeça. Liberdade total de forma e conteúdo. Se alguém quiser colocar em palavras as coisas mais censuráveis e depravadas que a mente humana pode imaginar, tudo bem. Por exemplo: clubes de swing para cosplayers. Padres que curtem BDSM. Discussão Lula versus Bolsonaro no almoço de Natal. Viu? Pura devassidão, mas ninguém me censurou.

No começo, a ideia de colaborar com o site parecia boa. O problema é que ninguém tinha me contado como é difícil produzir textos com constância e consistência. E não é falsa modéstia. Eu sei que sei escrever. Só que escrever, mesmo, é outra coisa. Assim, sem perceber onde estava me enfiando, fiz a primeira crônica. Sofri um pouco, mas saiu. Na segunda vez, já tive que desenterrar um dos poucos textos prontos que eu tinha. Mesmo assim, reescrevi um monte de coisa e acabei em cima da hora. Na terceira postagem, eu estava desesperado. Nenhuma ideia, nenhuma inspiração. Parecia que a minha musa estava de férias em Plutão, sem data para voltar. E era só a terceira postagem. A título de comparação, alguns dos escritores produzem para o site há anos.

Esta é minha quarta crônica e eu ainda não entendi o segredo deles. O que tenho até agora são duas dúzias de rascunhos jogados numa pasta do computador. Já comecei a escrever sobre minha banda favorita, gente com asas, os bastidores da televisão e sobre a receita de um bolo. Nenhum dos textos tem mais de dez linhas. Tudo parece um lixo, o fundo do poço, a Fossa das Marianas do espírito. Mas se a minha musa continua longe, o prazo está bem aqui do lado, me lembrando que domingo sim, domingo não, eu tenho que publicar.

Por que a gente se submete a isso, né? No começo, achei que era só por vaidade. É gostoso receber um monte de coraçõezinhos nas postagens de divulgação. E também é uma delícia ler comentários elogiosos no fim do texto (inclusive, não me incomodo se o leitor quiser deixar um agradinho aqui no final). Mas se fosse só por isso, eu sem dúvida estaria no caminho errado. Uma foto que postei no Ano Novo, do cachorro do meu cunhado (não é uma metáfora: meu cunhado tem mesmo um cachorro), continua rendendo dez vezes mais curtidas que todos os meus textos somados. Ô, cachorro bonito.

Então, se não é só pela vaidade, pensei que poderia ser também pela necessidade de botar para fora tudo aquilo que eu sinto. Só que eu faço terapia há mais de uma década. E se nem lá eu falo o que sinto, imagina aqui. Então, por quê? Me sobram outros improváveis motivos: pelo amor à Língua Portuguesa; para deixar minha família orgulhosa; porque meu pai me alfabetizou quando eu era bem novinho e agora me sinto em débito; porque sou um reptiliano que cria textos para ficar milionário e reinvestir tudo em antenas HAARP; porque Deus quis; ou porque Deus não quis mas eu gosto de contrariar. Enfim: meias razões, assim como meias histórias, eu tenho um montão.

No fim das contas, seja qual for o motivo, agora não tem mais jeito. Eu me comprometi a entregar um punhado de parágrafos a cada dois domingos. E acho que a real razão de escrever passa por aí: depois dos novos colegas que fiz, o processo de fazer porque tem que fazer foi uma das melhores coisas que eu tirei dessa experiência. É muito fácil ficarmos perdidos nos nossos delírios de grandeza. Mas quando encontramos os próprios limites e a própria pequenez, por tabela também descobrimos um pouco mais de nós. Como diria o Tolkien, “na falta do grande vai o pequenininho, mesmo.” A cada bloqueio, a cada folha em branco, você é obrigado a dar uma fuçada nos cantos mais empoeirados de si para ver se não tem nenhuma ideia perdida. E de vez em quando, tem.

Imagem: Pixabay

Comentários

sergio geia disse…
Obrigado, Jander, por compartilhar dessa sua agonia. Pensa que também não a sinto? Tento escrever, escrever, escrever, e ler para me inspirar. Uso do expediente de escrever alguns textos atemporais. Podem ser publicados hoje ou daqui a dois anos, não perdem o "time". Quando esse meu estoquezinho vai acabando, bate agonia. Essa sua aí. Forte abraço, amigo!
André Ferrer disse…
Jander, a expressão "olho do furacão" te acalma? Ela dá a impressão de algo forte, mas temporário. Mas o furacão da escrita possui muitos olhos. A gente apela para o estoque de textos. A gente desfalca o tão planejado livro de contos. A gente volta à estaca zero e escreve. Bem. Uma das coisas que acontece, com o tempo, é o aumento do prazer quando se termina mais um texto. Antes, eu não sentia, mas já estou começando a acreditar que seja esse o motivo de escrever. Abraços! Obs.: Escrever sobre "o escrever" é um bom sintoma.
Zoraya Cesar disse…
hahaha, o Jander escreve tão bem (coraçõezinhos, coraçõezinhos, coraçõezinhos) que até qd fala da própria agonia nos faz mergulhar na mesma identidade, até qd escreve sobre a 'síndrome da página em branco', fatalidade que atinge todo escritor com prazo, o faz com maestria.
Vc precisa nos contar mais sobre esse seu trabalho! E não há vergonha em fazer trabalhos 'intelectualmente menos satisfatório", digamos, para pagar os boletos, esses demônios grudentos que nos obsediam assim q entramos na vida adulta e só nos largam no desencarne, náo há exorcismo q dê jeito. Grandes atores e atrizes fazem filmecos para se manter na mídia e pagar as continhas das férias no Caribe. Escrever é preciso, pagar contas é imperativo.
Agora, q texto chique, hein? Tolkien, fossas Marianas do espírito, Hemingway...
Mas, no fundo, foi um tremendo despojamento de ego, e ainda contou a história de todos nós. Obrigada.
Que maravilha de texto, me identifiquei em vários aspectos!! Adorando te ler Jander, continue 😅
Ana Raja disse…
Jander, me reconheci no seu texto e sinto as mesmas angustias. Muito bom ler você!
Albir disse…
Além do texto maravilhoso, os comentários também disseram tudo que eu queria dizer. Confesso que também já recorri a esse expediente, de falar sobre as dificuldades com a página em branco, mas o seu disse melhor!
Abraço, Jander!

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