E AINDA CANTAM >> Albir José Inácio da Silva

                                                                                                                                                       “Cantar nunca foi só de alegria, com tempo ruim todo  mundo também dá bom-dia”      -    Luiz Gonzaga Junior

 

Embora ouça e goste de música desde a infância, nunca aprendi ou me atrevi a cantar, a não ser sozinho ou em grupos animados, apenas mexendo os lábios para não ser ouvido. E considero isso, somado a outros cuidados ecológicos, a minha contribuição para a humanidade.

 

Alguns professam que o canto salvou suas vidas. Confesso profunda inveja dos cantadores, que não precisam de motivos ou felicidades para cantar.

 

Os “de Jesus”, por exemplo, cantam há muitas gerações. E não me refiro aos cristãos, que também cantam, mas à família “de Jesus”.  O bisavô Justino de Jesus tocava uma sanfona de fole remendado ali pelos anos quarenta do século passado.

 

Antes tocava batuque e cantava nas rodas.  Mas batuque e capoeira foram proibidos e davam cadeia demorada, surra de cassetete e tiro em quem resistia. Não precisava de baderna, bastava a música, o batuque, e o pau cantava.

 

Justino veio parar na favela depois que a família foi expulsa da gleba em que plantava a sobrevivência na secura do chão.  O coronel chegou com soldados e um papel manchado de grilo. O sanfoneiro não discutiu, pegou a família e partiu para o Rio de Janeiro.

 

Com o avô Antônio de Jesus, que tinha sido escravo, Justino aprendeu batuque e mansidão:  “Ao preto não adianta ter razão, adianta ficar vivo” - ensinamento que ele repetiu pela vida a fora. Nos intervalos da labuta como servente de pedreiro, Justino cantou forró enquanto viveu.

 

O filho de Justino, José de Jesus, não aprendeu a lição. Arranjou emprego bom na fábrica e tocava uma viola muito elogiada. Mas cantou protestos, Vandré e A Internacional, meteu-se em greves e passeatas, e desapareceu misteriosamente numa delegacia do DOPS. Sua filha Delaide até hoje guarda o violão de José.

 

Delaide de Jesus não perdeu só o pai. O marido foi assassinado pela polícia numa viela da comunidade durante uma operação. Não adiantou a carteira profissional, o auto de resistência o chamou de bandido, e nem indenização ela recebeu. Dois filhos de Delaide foram arrancados de dentro de casa para o micro-ondas da milícia – pilícia ou molícia, como dizem na favela.

 

Mas Delaide é passista na escola de samba e canta na Avenida e nas biroscas da comunidade. Restaram-lhe a caçula Camila e a neta Sofia, para quem ela canta samba de ninar.

 

MC Camila de Jesus engravidou aos treze e está concluindo o ensino fundamental. Sonha com Universidade e sucesso na música, mas, por enquanto, canta nos bailes. E escreve rimas de funk num caderno sobre o fogão, de olho no leite que ferve para a mamadeira de Sofia.

 

Sofia de Jesus está com dois anos e se sacode toda quando ouve o pancadão.

 

Parece que elas, melhor que os homens, estão sofisticando a lição ancestral: precisam ter razão e ficar vivas para resistir.

 

Eu não canto. Talvez por isso a música nunca me salvou. Mas me consola.

 

 

 

Comentários

Lady Killer disse…
Se te consolo, Dom Albir, então também te salva. Música é isso, um escape da realidade, uma catarse. A gente canta por dentro que o nosso mundo caiu; que viver é não ter vergonha de ser feliz; que tristeza nao tem tem fim, felicidade sim; que o mundo é moinho e que lá no lugar onde vou morar há de ser bem juntinho ao mar, meu mar. Música salva, de um jeito ou de outro. Olha vc aí nos mostrando isso.
Que lindo texto!
Jander disse…
Que texto, Albir. Doloroso, às vezes bruto, e lindo. Gostei muito.
André Ferrer disse…
Sobretudo, a música é o veículo de várias posturas, das várias pessoas, nas várias épocas. Lindo texto Albir!
Nadia Coldebella disse…
Primeiro veio essa frase: "E considero isso, somado a outros cuidados ecológicos, a minha contribuição para a humanidade". - gargalhei alto aqui, pensando no desespero das minhas meninas quando canto no banheiro.

Mas aí seu texto foi me tomando, meus preconceitos musicais apareceram - não adianta, não gosto de funk, não suporto as letras.

Mas aí veio a ideia da musica-resistência, ou como você mostra, musica-sobrevivência.Lendo o teu texto, parece que pude olhar o mundo através das lentes de um drone, alcancei longe: Cada um luta com as armas que tem, mesmo que eu não goste delas, e isso é uma tremenda lição, pois o teu texto me mostra que meu julgamento é pueril e egocêntrico.

Aí veio a ultima frase do texto, cheio de humildade generosa: "Eu não canto. Talvez por isso a música nunca me salvou. Mas me consola". Mas você escreve e suas palavras gritam música para se ouvir com o coração.

Obrigada pelo texto lindo!
sergio geia disse…
Que prazer ler você nesta manhã. Que texto atual, irônico, uma ironia fina. A música é resistência, é sobrevivência, é consolo. A literatura também.
Albir disse…
Zoraya, Jander, André, Nádia e Sérgio, obrigado pelo carinho.

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