UMA PRETENSA TEORIA DA COISA >>> Nádia Coldebella

Coisa é uma palavra que cabe para praticamente tudo. 




É possível, na língua portuguesa, substituir a palavra coisa por alguns sinônimos, quase com a mesma versatilidade.

Posso citar alguns, só para deleite do leitor: objeto, peça, utensílio, instrumento, elemento, ente, troço, treco, trem, negócio, parada, joça, porcaria, bugiganga, quinquilharia, bagulho, cacarecos, tralha, traste. acontecimento, ocorrência, evento, episódio, caso, lance, fato, realidade, incidente, sucedido, acontecido, pensamento, ideia, noção, conceito, concepção, imagem, relação, vínculo, ligação, relacionamento, laço, elo, vinculação, conexão. empreendimento, ato, ação, realização, feito, projeto, iniciativa, motivo, razão, causa, incentivo, estímulo, motivação, impulso, compensação, mal-estar, indisposição, achaque, ataque, incômodo, doença. Aff!! Mistério, enigma, segredo, incógnita,  bens, interesses, afazeres, baseado, cheio, fininho, finório, grinfa, bagana, boró, jererê, mingote, soró, charuto, broca, ganza, diabo, demônio, demo, belzebu, capeta, lúcifer.

E eu digo que é quase que com a mesma versatilidade, porque nenhuma destas palavras contempla o significado total que a palavra coisa pode contemplar. Coisa significa tudo que existe, significa qualquer ser vivente, abstrato, inanimado,  fato, circunstância, condição, mistério, segredo, assunto. Significa também um baseado de maconha e o que vem depois.

Além de servir como substituição para qualquer coisa, ela pode se tornar um verbo de extrema utilidade: o verbo coisar.

Eu coiso, tu coisas, ele coisa, nós coisamos, voz coisais, eles coisam.

Você pode flexionar o verbo em todos os tempos que você conhecer. E pode também flexionar em tempos desconhecidos.

Para ilustrar melhor essa funcionalidade, passo a relatar como descobri a magia da coisa. 

Certa vez, quando eu era criança, fui até a biblioteca da minha cidade. Eu era devoradora de livros, então era conhecida por lá. Entre uma pergunta e outra ao bibliotecário, ele sussurrou para uma auxiliar:

-Você viu onde tá o… o coiso?

 Ela respondeu: 

-Aí em cima da… da coisa.


-Ah, obrigado. - E ele foi lá e achou.

Naquele dia eu também percebi uma das muitas coisas misteriosas que envolvem o cérebro humano. Entendi que existe uma espécie de paranormalidade, uma sensibilidade ignorada que permite que a coisa aconteça, que o sentido de uma coisa coisada seja compreendido por qualquer pessoa.

Com a maturidade, também compreendi que eu posso usar a coisa a meu favor.

Depois dos 40, é comum as palavras sumirem do seu cérebro, seja em função do estresse, seja em função das mortes dos neurônios, seja em função das noites mal dormidas ou da preguiça mesmo. É comum também a gente lidar com muita coisa ao mesmo tempo e quando se apresenta aquela gama enorme de coisas que você não consegue precisar com as palavras do seu vocabulário, é uma saída simples usar a função sintética do vocábulo que estamos analisando. 

Imagine a sua resposta à complexa pergunta:

-Como você se sente?


Diante dessa motivação, afloram aqueles monstrinhos confusos e extravagantes chamados sentimentos. Eles já procriaram entre si, então a resposta é conhecida e desconhecida ao mesmo tempo. Eis então uma solução que se situa entre o concreto e o metafórico e que será prontamente entendida pelo interlocutor.


-Me sinto coiso.


É como eu sempre digo: uma coisa é uma coisa, outra coisa é outra coisa.


Pois, caro leitor, quem nunca se sentiu coisado nessa vida? Se você busca precisão, diga então que se sente coisado. Garanto que poucas perguntas surgem, pois a empatia a tal constatação é inata.

Coisa, coiso e derivados também servem para nomear aqueles que esquecemos.

- Não esquece de chamar o… coiso para festa.


- Cadê a… coisinha? Ela não veio com você?


- Mãe, o pai foi beber uma com o seu coooiso!


Sei que parece de extremo mal gosto, caro leitor, mas garanto que a intenção aqui não é coisificar ninguém. Na verdade, a tal pessoa deve ficar feliz. Embora seu nome tenha sido subtraído da mente de alguém, ela não foi esquecida. Um recurso linguístico poderoso foi empregado para que sua pessoa se fizesse presente.

A função sintética, sincrética e analítica da palavra coisa realmente me comove. Ela pode variar de uma extrema positividade para a mais completa e nefasta visão de determinada coisa. 

Vejamos alguns exemplos.

A pandemia é a coisa mais assustadora que aconteceu nos últimos tempos. O Brasil está uma coisa. Estamos atualmente todos coisados. Ou fomos coisificados. Ou ainda não sentimos coisas perante as coisas coisadas. Ou o coiso está coisando. 

É claro que corro o risco de soar política também, porque se a coisa tá preta, pode ser qualquer coisa. E a interpretação depende das coisas que passam na mente do leitor. E com toda humildade, espero, nessa altura do texto, que nenhuma censura me coise.

Ao chegar ao fim dessa singela crônica, me faltam palavras para expressar os pensamentos que agora tomam conta do meu cérebro. Portanto, apenas os deixo com o mais profundo e elementar deles, na honesta certeza de que serei completamente compreendida:

-Coiso.

Comentários

Sandra Modesto disse…
Não esquecendo que: "a coisa tá preta" é uma expressão racista. Porque se a coisa tá preta, a coisa tá boa. Eu sou filha de um homem preto e mãe de um menino preto. Ler " a coisa tá preta, é extremamente, triste. Há um dicionário de expressões racistas. Devemos evitar.
Aliás, o coiso ocupante do Planalto central, é racista. Entre outras coisas.
Nadia Coldebella disse…
A intenção não foi ferir a pessoa de ng, até porque a ideia do texto é exatamente explorar o conceito da coisa com os qualificadores q ele propõe. Nesse parágrafo em específico abordo exatamente essa dicotomia e a interpretação de quem lê. Acho que devemos evitar qqr expressão q ofenda o outro, mas tbm devemos tomar o cuidado para não retirar as coisas do devido contexto. E embora a expressão seja entendida como racista, ela circula livremente por ai. E no caso do meu texto, ela surge com essa intenção, de trazer o cotidiano para a escrita. É o q a cronica faz, não é? Penso q não é suprimindo algo q resolvemos um problema, mas discutindo e esmiuçando os porquês e a lógica de sua existência. Te agradeço o apontamento, pois agora começo a refletir sobre essa questão com uma profundidade maior e espero trazer o resultado disso na próxima cronica.
Sandra Modesto disse…
Nádia, eu entendi o contexto da crônica. Mas eu não tolero a expressão citada. Não perdoo nem Chico Buarque na música dos anos 70, na letra: " o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta. "
É uma expressão racista. E abri o debate por saber que você ia dialogar. Obrigada, 😘
branco disse…
carissima.
texto irretocável e principalmente provocante (textos que não são provocantes, acredito serem dispensáveis).
E olhe só, você tomou o cuidado de não usar a expressão " deu um branco no coiso " pois acho o termo " dar um branco ," extremamente racista , haja vista que nós ,brancos, somos colocados em situação de inferioridade, quando acredito somos todos da mesma estatura, o mesmo se aplica ao termo " folha em branco " que você sabiamente evitou.
Enfim, ler você foi com o receber uma lufada de vento fresco no rosto.
Zoraya Cesar disse…
NadiaBella, nada como uma coisa dessas pra refrescar a mente e colocar as coisas no seu lugar. Se a coisa tá preta, branca amarela ou cor de rosa, o importante é coisar em paz.
E, para terminar, já que me faltam palavras, seu texto está uma coisa! (sem falar no extenso vocabulário de presente que recebemos)

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