FRAGMENTOS DA MESA QUINZE >> André Ferrer

 


─ Olhe só! 

─ Uma onça de gorjeta! Na mesa dez? 

─ O bigodudo da quatro. 

─ Amanhã, eu colo nele. 

─ Tire o seu cavalo da chuva, pois o homem fará o checkout amanhã bem cedinho. 

─ Misericórdia! 

─ Libânio, é toda sua. Trago da mesa nove. Uma criançada dos diabos! 

O outro garçom contornou Libânio e estacou do outro lado da pia. 

─ Que desperdício ─ murmurou. Segurava um cigarro apagado entre os lábios. 

─ Olho maior do que a boca ─ disse Libânio, que terminava de secar os pratos da bandeja anterior. ─ Saio daqui meia noite. 

─ Quem mandou deixar o agreste? 

─ É mesmo, Lib! Posso chamar você de Lib? Só para os íntimos. 

Riram, os dois garçons. Depois, o que tinha o cigarro na boca convidou: ─ Silvano, venha tomar uma fresca. Eu ando doido pra fumar. 

─ Não posso ainda, Paulo. O sujeito da quinze pediu a conta. Eu levei. Então, falou assim: “Um minuto, pois estamos conversando.” Fiquei cabreiro quando vi a cara da moça e do casal de idosos que acompanham o sujeito. 

─ Oxente! ─ fez Paulo depois de tirar o cigarro ainda apagado da boca. ─ Ficaram noivos ontem. Lembra? Já deu tilt? Será? ─ Quem sabe? 

─ Vou fumar. Boa sorte. Pra você também, Libânio. 

O lavador de pratos pisou no pedal do tambor de lixo e começou a despejar os restos de comida lá dentro. Um pecado, pensou. No Calhau, daria pra matar a fome de muita gente! 

Libânio conseguiu terminar antes da meia noite, hora do último coletivo. Ainda no ponto de ônibus, diante do resort onde trabalhava, ele começou aquele jogo de montar os pedaços das conversas entre Silvano e Paulo. Um jogo divertido. Um jogo semelhante ao método de ensino do tio Juca do Cordel, que ensinava mediante histórias e era o único professor de leitura e conta na Fossa do Calhau. Por sorte, era irmão da sua mãe. Libânio sabia ler e calcular como poucos no Calhau. Até mesmo, quem sabe, só perdesse para o próprio mestre. Graças ao tio, devorava livros de cem, duzentas, trezentas páginas. Interessava-lhe, portanto, histórias de qualquer natureza. Lidas. Contadas. Assistidas. Roubadas. Paulo e Silvano, justamente aqueles dois, tinham o hábito de trocar comentários perto da pia onde se lavava a louça. Isto é, onde justamente o Libânio trabalhava há duas semanas. 

Quando o ônibus parou, ele se perguntou a respeito da mesa quinze. A união firmada na véspera! O que ocorrera com os paulistanos? O noivo, a noiva e os pais dela ─ ou dele ─ brigaram? Os noivos brigaram? A cabeça no vidro, Libânio conjecturava. Repetiu a pergunta até o ponto em que devia saltar. 

─ Olhe só! 

─ Uma garoupa! ─ disse Paulo. ─ Nem começamos, hoje, e você já faturou cem de gorjeta. Como você é um rabudo Silvano. 

─ Pois é! Foi o velho da quinze. 

─ Da quinze! E os pombinhos? 

─ Nem sinal hoje. Os coroas jantaram sozinhos. 

Tio Juca do Cordel era refinado. Dizia ganhar dinheiro, mesmo ─ dinheiro grosso ─ com os seus livrinhos. Técnica apurada. Guardava um segredo a sete chaves. Um velho livro de histórias que ficava do lado da moringa encardida. Libânio soletrava o nome do autor, certa feita, acocorado rente à cama do velho: “Mau... pa. Maupas... sá! Gê... e... gê. U... Guy de Maupassan... ti.” 

─ O “t” é mudo analfabeto da moléstia! Quem foi que mandou você entrar aqui? Moleque safado ─ tinha dito o tio. 

Aquela noite, a moça ficara na suíte. Libânio tinha certeza enquanto assistia à primeira parte do primeiro filme da madrugada sem saber do que se tratava. Seus olhos cansados atravessavam o aparelho de tevê. O noivo já estava em São Paulo. Isto é, o ex-noivo. “Nada como uns dias à beira mar querida. Nossa filha precisa ficar um pouco sozinha. Tudo passa.” ─ Sim. Tudo passa ─ repetiu Libânio enquanto ajeitava o travesseiro fajuto da pensão atrás da cabeça. Imaginou a conversa dos velhos. Na tevê, um casal também conversava. Estavam diante do mar. Então, Libânio admitiu que o sono chegava pesado e enxertava as duas histórias. 

Uma vez, o tio Juca cedeu e recitou uma das histórias do livro secreto. Libânio prestou atenção redobrada. Parecia véspera de Natal! O dia em que se desenterrava a lata do porco. A mãe tirava a última e mais valiosa peça de carne da lata. O lombo surgia, escorrido de banha, brilhante, prontinho para ir ao forno com as bênçãos e a graça do Menino Jesus. 

─ Tio Juca! 

─ O que foi moleque? 

─ Essa história do seu Maupassanti... 

─ Praga! O “t” é mudo. Já disse. O que foi? 

─ É muito parecida com aquela história sua do Capiroto contra a Nhá Rita do Calhau. Visse? 

─ Demônio ─ disse o tio. Depois, fechou o seu livro secreto, ficou em pé e chutou o tamborete. ─ Agora que não leio mais é nada. 

Libânio fechou a torneira. Fazia calor na cozinha e o manuseio de água quente piorava as coisas. Quando olhou ao redor, descobriu que o maître e o chef bebiam água fresca perto da geladeira. Por causa de uma frouxidão no avental, Libânio jogou as mãos para as costas, desatou o cordão e refez o nó. Silvano entrou naquele momento. Atrás dele, veio Paulo, que carregava uma bandeja lotada e soltou um oxente porque a porta vaivém enroscou. 

─ Boa noite Lib! ─ disse Silvano. ─ A temporada se foi. Agora, gorjeta boa só no Carnaval. 

─ Decidi voltar a estudar ─ fez Libânio. ─ Quem sabe não viro garçom antes do próximo verão? 

─ Quem sabe, né, Lib?! Agora, é isto aqui ─ disse Paulo. Descarregou a bandeja na pia. Estalou os dedos para o maître, que espremia limão dentro de um copo. ─ Tem lugar para o Lib? 

O maître sorriu e foi atrás do chef, que o chamava para conferir algo no depósito. 

─ Então, Paulo, a oito já era? 

─ Sim. 

─ Fiquei de levar a conta para a quinze. 

─ ‘Cê viu a moça?! 

─ O noivo apareceu e eu ainda não compreendi o porquê. 

─ Moça?! Ora, meu caro. 

 ─ Aquilo está mais para bruxa. 

─ Então, você escutou. 

─ A velha foi tão amável com ela! “Este resort é maravilhoso. Você está noiva, filha. Melhore o seu humor!” 

─ E o velho: “Escute a sua mãe, filha. O seu noivo teve que ir a São Paulo por causa dos negócios. Já voltou. Imprevistos acontecem e tornarão a acontecer, a vida toda, e assim será durante o tempo em que vocês estiverem casados.” 

Libânio respirou fundo. Pisou no pedal do latão. Quase derrubou o prato lá dentro. 

─ Malcriada! ─ disse Paulo. 

─ Xenófoba. 

─ Ingrata. O noivo pegou um avião atrás do outro só para estar aqui hoje. 

─ ‘Cê ouviu o que ela disse? 

─ Pois queria desouvir! 

─ Ela disse: “Mamãe, grande coisa isto aqui. Estes resorts são iguais ao Parque do Ibirapuera. Mais de dois mil quilômetros distantes e a gente só encontra paulistano. A única diferença é o tema nordestino. Se transferem o Centro de Tradições para o meio do Ibirapuera, fica idêntico! Nunca vi paulistano para gostar desses parques temáticos nordestinos! Afe!” 

─ Um horror! 

─ Pois não foi?! 

Libânio gemeu indignado. Suas mãos bambearam. O segundo prato caiu e bateu lá no fundo do latão de lixo. 

Antes da meia noite ─ bem antes ─, Libânio se despediu do maître e do chef, que saíam do depósito. Um deles trazia uma lata de aspargos em conserva na mão. 

─ Vencido. 

─ Até amanhã, Libânio. Futuro garçom! 

─ Se depender de mim. Boa noite. 

─ Vencido sim. 

Estava cedo para o ônibus. Libânio resolveu caminhar até a praia e atravessou a esplanada cheia de palmeiras. À direita, as piscinas. Um funcionário pescava uma folha de coqueiro com um puçá. Os reflexos da noite fizeram Libânio imaginar um peixe graúdo. A lateral serrilhada da folha mais parecia a barbatana de um monstro marinho. Com muito custo, o piscineiro fisgou a criatura. Puxou a rede pelo cabo. Coçou o couro cabeludo por baixo do boné. 

─ Boa noite rapaz! ─ disse o homem para Libânio. 

─ Até! 

No final da esplanada, o lavador de pratos estacou. De repente, ele resolveu que não precisava avançar. Ficou de olho no brilho das ondas já fracas e delgadas, que formavam uma camada espelhada sobre a areia. Os refletores da esplanada também revelavam a silhueta de uma moça, que caminhava, só, a uma boa distância dali. Então, Libânio teve fé numa coisa: ─ É ela. 

Sentiu-se melhor. Tanto a história da Nhá Rita quanto o seu modelo, a história do tal Maupassant em que o tio se baseara, fundamentavam-se na ideia de um forte arrependimento. Tio Juca do Cordel se negara a ler o resto da história, mas Libânio tratou de completá-la com recursos próprios. 

─ Tenho fé ─ repetiu. ─ Precisa ser ela. 

 Cabisbaixa, a moça chutou algo na areia. Uma concha. Um pedaço de planta. Um hábito. Libânio sorriu, girou o corpo e começou a cruzar a esplanada porque o último ônibus para casa chegaria à meia noite.

Comentários

Zoraya Cesar disse…
André! que desenvolvimento peculiar! Típico de quem leu os clássicos portugueses. Vc é sempre uma surpresa boa. Amei demais.

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