EU VOU ALI JOGAR A ULTIMA PARTIDA >> Fred Fogaça

 

-  Quero nem saber se o cara vai perder vinte mil na mesa, ele só tem que me pagar as fichas - ainda não tinha escolhido meu taco quando ouvi, meio às garrafas  de bebida, a voz do responsável pelo recinto. Eu tinha um copo americano vazio no balcão de granito, esperando um dose incerta da 51 que vinha começada na mão dele.  Virou pra mim o nariz fora da mascara  preta de formato de concha e executou a medida não definida de uma dose de cinco reais. Eu já nem viera de máscara.

- Ô tiozão, me dá dois real trocado aqui - um sotaque nordestino veio da frente do balcão, de uma cara engraçada de quem perdia por pura diversão - o que, princípio, parece pouco, mas se aposta dois reais, ficha e não terminava no primeiro jogo. O tiozão já sabia disso, abria  o caixa, pegava uma nota de dois e estendia. Quando a nota lhe saia da mão, virava pro seu caderno, implacável, e contabilizava dois reais na conta do nordestino que ele já sabia dos desfeitos na mesa de bilhar.

Outro dia ouvi de relance o nordestino falar coisa sobre problemas em casa,  coisa de parentes com o tal do vírus, a empresa que mandou embora um monte de gente por falta de serviço e o seguro desemprego  - ainda bem - ia salvar alguns meses. Mas faziam todos os meses de seguro desemprego que eu ouvira e o nordestino ainda balbuciava algo sobre faltar trabalho e  esses tempos são difíceis. O dono ouvia essa conversa tanto quanto eu ouvia, e igualmente eu, dono do bar, o interlocutor do nordestino e mais um fulano em pé, perto deles, ouvia a desgraça sem intervir, sem aconselhar, sem cuidar da vida dos outros. Assim é que se aprendia ser homem a uns anos atrás, não se interrompe outro homem de arruinar a própria vida, cegamente envolvido com vícios e fraquezas, é ser pedinte, excessivamente curioso, beirava ser coisa de viado.

Não se interrompe um homem acabando com a própria vida, porque ele provavelmente sabe o que faz. O dono do bar, inclusive, lustrava copos americanos de mascara malemá na boca enquanto enquanto o nordestino confidenciava, com toda segurança, seus próprios vacilos. A mulher não tinha dinheiro pra toda a comida mas um pouco tinha ainda, das contas são só 4 meses atrasado de agua, que a companhia já cortou, mas religou a água na malandragem e seguiu usando. Os meninos, eles os mandaram  pra casa da vó, de onibus de excursão, eram gastos a menos e além do mais, com a vó eles aprendiam direitinho as tradições do povo deles. Ainda que venderam o carrinho velho pra cobrir umas contas de imposto, porque imposto é coisa séria, eles podem tomar a casa. Não que ela fosse, assim, uma fortaleza de segurança, muito pelo contrário, as paredes já rachavam o cimento ruim da cohab. Sua voz não oscilava, não diminuía, falava de tudo como  numa bem feitoria, mas seus olhos viravam pra cá e lá, rápidos, procurando qualquer coisa que não encontrava.

Nesse dia, enquanto eu tomava minha dose de 51 que, digamos a verdade, era sim modesta pra cinco reais, decidi não escolher mesmo um taco e fiquei na ponta do balcão, na beira de tudo, olhando o nordestino perder rindo, pedir dois reais e mesmo assim insultar a falta de habilidades do oponente e cantar bolas que ele não fazia - ou muito por sorte. Ele trocava de oponente sem praguejar e se estendia paciente noite adentro, até o toque de recolher. Então ele veio de taco na mão, deixou um punhado de notas confusas no balcão:

- Tiozão, eu vou ali jogar minha última partida. -  e perdendo, como esperado, saiu pela porta pra nunca mais - e nós que ficamos, os frequentes,  seguimos assim, sem questionar, e nem falamos mais nele.

Comentários

Sandra Modesto disse…
Arrasou! Parabéns pela crônica.
Albir disse…
Muito bom, Fred! Essa crueza das cenas e dos personagens está por aí, mesmo quando preferimos não ver.

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