A MULHER DA ÁRVORE - Parte 5 >>> Nádia Coldebella

O PÁSSARO


Naquele cenário etéreo, reconheceu a árvore com o qual sonhara.



A chuva voltara a cair, em pingos grossos e violentos, desvanecendo a etérea visão da árvore que segundos antes impregnara a retina de Domênico. Esquecido da sensação de urgência que começava a se formar em seu peito, pôs-se a correr junto com os outros dois homens.

Chegou ao hotel cansado, encharcado e sujo. Ideias aparentemente desconexas iam e voltavam, saracoteando, borboleteando, sapateando sobre toda a lógica com a qual ele estava acostumado. A luta era tanta que resolveu tomar um banho e deixar a água quente amortecer seu couro cabeludo. Depois de longos minutos, vestiu-se e permaneceu um pouco de pé, em meio ao quarto, sem saber direito o que fazer. Estava cansado, lembrou-se, indo até a cama e ajeitando os travesseiros contra a cabeceira. Sentou-se, pernas estendidas, mãos cruzadas sobre a barriga, tronco inclinado e cabeça pendendo para trás, apoiada na parede. Sentia-se num divã e assim ficou, de olhos fechados, observando os próprios pensamentos como quem observa uma festa do lado de fora da vidraça.

Uma mulher aproximou-se. Ela vestia uma espécie de túnica que destacava os cabelos longos, amarelos e fartos. Eles caiam sobre os ombros e se perdiam em cascatas de luz. Ela pegou o homem pela mão e o conduziu até a grande árvore, O sol entrecortava os ramos e os raios incidiam diretamente sob o chão. A mulher foi andando e se pôs sob a luz e lá ficou. Ele observou que ela estava apenas com um chinelo e achou aquilo estranho. Mas não teve muito tempo para perguntar, porque assim que as batidas começaram, a mulher se afastou. Domênico acordou com os sinos da igreja que chamavam os fiéis mais fervorosos para a missa diária das dezenove horas. 



Riu-se por dentro. As pessoas deviam perguntar-se mais sobre quem são aqueles que sentam no banco da frente de uma igreja. Porque sentar no  fundo é sempre melhor para quem não tem nada a esconder, para quem não deve nada a ninguém ou para quem quer manter a tradição. Na frente, são apenas dois os tipos de pessoas que sentam: os que realmente estão no caminho e desejam agarrar todo o ensinamento e aqueles que precisam manter as máscaras. Estou no segundo tipo, pensou, sem sentir qualquer arrependimento ou comiseração. Quem duvidará de alguém que senta no banco da frente? Dirigiu o olhar para o padre e revestiu-se serena piedade, enquanto continuava a rir escrachadamente por dentro.



A noite foi bastante conturbada para Domênico. Não foi bem um sono o que tivera, era mais um estado de transe letárgico, entrecortado pela lembrança dos acontecimentos. Acordou muito cedo e permaneceu longo tempo sentado na cama, ruminando seus próprios pensamentos. Depois levantou-se, sentindo-se um verdadeiro Hercule Poirot falido. Agatha Christie que o perdoasse, mas ele não tinha neurônios suficientes para, apenas raciocinando, resolver o sumiço de Vilminha. Não era à toa que vinha recebendo dicas do sobrenatural. Abriu a janela do quarto e contemplou um dia magnífico, quente e iluminado, perfeito para uma volta no campo.


Foi sozinho dessa vez. Não havia ninguém em casa, nem Elísio, nem a criança, nem a velha. Domênico tinha algumas perguntas, mas teriam que ficar para outra ocasião. Resolveu então refazer os passos do dia anterior, começando da área onde ficara sentado. 

De lá, conseguia entrever a lavanderia. A porta da cozinha estava fechada, mas a da lavanderia aberta, fornecendo acesso para quem estivesse ali fora. O local era bem pequeno, apertado mesmo. Ele calculou que, trabalhando, o lugar comportaria apenas uma pessoa, Se houvesse outra, onde ela ficaria? A máquina de lavar ficava em uma parede, perpendicular à da entrada da cozinha; na parede oposta ficava o tanque, ao lado da entrada do banheiro. Se outra pessoa ficasse por ali, ela se colocaria em qualquer uma das portas, era o único lugar possível.  Domênico fez uma careta, assim que deu-se conta de ter descoberto o óbvio ululante. Saiu para a área e observou o chão logo à frente. Uma das fotos indicava uma grande marca, como se algo tivesse sido arrastado por ali. As marcas ainda estavam por lá, quase apagadas por conta da chuva. 

Ele resolveu seguir a direção que o dedinho da criança apontará e caminhou lentamente até a árvore que vira no dia anterior. Ela estava lá, nada etérea. Na verdade, parecia uma árvore qualquer. Ele aproximou-se, cauteloso. Uma ansiedade misturada com temor arrepiou os pelos do seu braço. 

Andou mais lentamente, um passo de cada vez, o sentimento de urgência que começara a sentir no dia anterior voltando, alto, em fortes batidas, como o sino que o acordara do cochilo. Ele lembrou-se do devaneio que tivera e olhou para o local em que a luz incidira. O capim crescia alto por ali. Ele deu outro passo, pensando na mulher de cabelos de luz que havia parado sob os raios de sol.  

- Estou vendo coisa demais nessa árvore - pensou, ao observar uma certa discrepância no relevo.

A urgência agora atingia as raias do insuportável. Ele respirou pesado e virou o rosto na direção da casa, decidido a interromper por ali seu namoro com o sobrenatural. Porém, um forte trinado chamou sua atenção. Um bando de pássaros pretos - anus ou corvos, ele não sabia direito - pousara sobre o local em que o capim crescia alto. Bicavam avidamente o chão, às vezes brigando entre si. Pareciam procurar comida.

Domênico observou, durante alguns minutos, absorto na algazarra das aves. Até que tornou-se branco feito cera. E seu riso nervoso e aterrador ecoou pela campina. 

- O que o além tem contra sabiás? - sibilou.  

É que o maior dos pássaros tentava retirar do solo, com o bico, um chinelo azul.



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Leia desde  o começo:


Comentários

Jael disse…
Magnífico conto!
Zoraya Cesar disse…
Nádia, de roer as unhas! Intrigante, suspense pra gente ler com olhos semicerrados e desconfiados, como se o susto fosse aparecer de repente!
Albir disse…
Nádia, querida, preciso informá-la de que você terá que dividir com a Zoraya o preço dos meus soníferos.
Não me bastavam a pandemia e a Zoraya!

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