A Mulher da Arvore - Parte 04 >>> Nádia Coldebella

A oração


Uma sucessão de acontecimentos surreais acabaram por levar Domênico à Rio da Fortuna. E a menina parecia saber que ele viria.



Domênico, que havia se inclinado para melhor ouvir a criança, reclinou o corpo para trás e respirou profundamente, um respiro rápido. Sua primeira sensação foi a de um grande choque, mas seu treino policial fez com que  segurasse o ar mais alguns segundos nos pulmões e imediatamente olhasse para o rosto de Elísio e sua mãe. 


O homem, de olhos arregalados, olhava para a menininha, muito aturdido, sobrancelhas bem levantadas e boca levemente entreaberta, como se houvesse sido silenciado no meio da frase. A velha havia conseguido, por um milagre, ficar ereta. Contraíra a sobrancelha e o maxilar. As pupilas de seus olhos estavam muito dilatadas e fixadas em Domênico, revelando uma cor acinzentada que sugeria ter sido um azul intenso em alguma época. Ela o prescrutava. Domênico desviou seu olhar do dela, incomodado, e voltou-se para a menina.


- Onde? Me mostra. - A menininha apontou novamente e Domênico, dessa vez, olhou para onde seu dedinho apontava. Tratava-se de uma campina.


- Está chovendo, menina.  - Domênico ouviu a voz da velha, quase um rosnado. Voltou-se para ela. - Vêm - Ela olhava pra criança e fazia um gesto com a mão, chamando-a. - Está na hora de você tomar um banho e comer alguma coisa. - Carolina baixou a cabecinha e foi, mansamente, até a mulher, que a pegou pelo pulso e a levou para dentro. Elísio, que havia se recomposto, assumiu a conversa. 


- Desde que a Vilma foi embora, Carolina diz que ela está esperando. Ela acorda toda noite dizendo que a mãe a chamou. - Suspirou fundo . - Todas as tardes, nesse horário, ela senta ali na beirinha da calçada.  - Ele abaixou a voz. - E ela fica esperando, esperando. Ela espera a mãe voltar. 


Domênico manteve-se em silêncio mais alguns segundos, ponderando. Retirou o celular do bolso e deu uma conferida no watsapp. Tinha uma mensagem de Odete, mas depois ele respondia.


- Posso dar uma olhada no guarda-roupa de vocês.? - Elísio agitou-se e olhou para os policiais, que assentiram com a cabeça.


Domênico passou por um espaço em que havia um tanque e uma máquina de lavar roupas - o mesmo tanque da foto - e um banheiro do lado oposto. A seguir, cruzou uma porta de madeira e adentrou na cozinha. A casa era de madeira, toda pintada de branco e bastante pequena por dentro. Domênico sentiu-se grande demais para aquele espaço e procurou, sem sucesso, andar de forma cuidadosa, mas ao seu primeiro passo, o chão rangeu. Junto a parede, logo à esquerda da entrada, estava pia e armários verde-bandeira, com aparência muito velha. Logo a frente, um fogão de quatro-bocas e geladeira nova. A mesa tinha pernas de metal já enferrujados e era de um marrom muito feito, imitando madeira. A sala era conjugada e um sofá de três lugares, de um marrom bem mais feio que a mesa, fazia a separação dos ambientes. Outro sofá estava a direita e uma estante feita da mesma madeira falsa e metal enferrujado da mesa da cozinha a sua frente. Bem no meio da sala havia uma mesa de centro, coberta com um adereço grosseiro de crochet vermelho. Domênico reparou que crochet estava espalhado por todo o ambiente: nos tapetes em frente a pia, cobrindo o tampo do fogão e sobre a geladeira, em todos os espaços da estante e no encosto do sofá. 


- Minha mãe e a Vilminha discutiam muito por causa dessas coisas de crochet - disse Elísio, que havia seguido olhar de Domênico. Minha mãe gostava muito porque ganhou da mãe dela, mas era Vilminha quem tinha que lavar, sempre, no tanque, a mão, com todo o cuidado. 


O policial lembrou que nas fotos que havia recebido pela manhã não havia nenhum crochet. Também reparou, silenciosamente, que a casa já não estava tão limpa quanto as imagens mostravam. 


- Minha mãe não consegue cuidar direito da casa - desculpou-se Elísio, que parecia ter excelentes habilidades de telepatia. - Ela têm muitas dores nas costas. - Ele silenciou assim que a velha apontou para fora do quarto com a menina no colo.


Ela colocou a criança no chão e puxou-a entre os dois homens, esbarrando fortemente no corpanzil de Domênico, que manteve-se inerte como uma árvore. Foi até a mesa, afastou uma cadeira e fez a criança sentar-se. Em seguida, estendeu uma toalha sobre a mesa e colocou sobre ela pão caseiro e doce de goiaba, para servir a criança. O cheiro do doce penetrou as narinas do policial.


- Servido? - Perguntou Elísio e Domênico fez que não com a cabeça. Estava de dieta. Elísio deu um passo a frente - É aqui - disse, apontando para um quarto pintado de azul celeste, com uma grande cama de casal no centro.


- Antes minha filha dormia ali, com a vó. - ele apontou para o quarto rosa, com duas camas de solteiro. A casa tinha dois quartos, um em frente ao outro. - Mas desde que Vilminha foi embora, minha mãe dorme no meu quarto. Eu durmo no quarto da Carolina, assim fico mais perto quando ela acorda durante a noite. - Ele suspirou mais uma vez - Mas as coisas dela estão aqui - Ele entrou no quarto do casal e Domênico o seguiu. Elísio abriu a porta do guarda-roupa e Domênico percebeu que tudo estava lá, intocado.


____

A chuva já havia acalmado bastante, quando Domênico saiu da casa. Depois de mandar uma mensagem para Odete, explicando que ia pernoitar em Rio da Fortuna, ele e os outros dois policiais resolveram dar uma volta na campina, na direção que o dedinho de Carolina apontou. 


Na campina, Domênico avistou uma árvore. Um vento  suave soprou e alguns raios de sol apareceram entre as nuvens, colorindo as folhas de vermelho e dourado. Embora a chuva tivesse cessado, as gotículas depositavam-se por toda parte, e, sob a luz que agora despertava, conferiam àquele inusitado cenário um aspecto etéreo. Junto a árvore, alguns capins dançaram, embalados pelo vento. Pássaros pousaram nos galhos que estavam floridos. Logo o cheiro das flores chegaram até Domênico. O do perfume de Vilminha. 


- A árvore! - Anunciou, extasiado, ao lembrar do dedinho da criança apontando para a mesma direção que o dedo da mãe apontara em seus sonhos.


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Um rosto olhou para o espelho e suspirou ao contemplar os próprios olhos. Abaixou a cabeça. Senhor, Senhor… - seu pensamento dizia, enquanto procurava o melhor tom para as palavras e forçava algumas lágrimas a escorreram pela face. Admirou-se por um segundo e o rosto procurou novamente o espelho. Repentinamente cambaleou para trás. Encostou-se na parede, mãos desesperadas sobre a cabeça. Os olhos que vislumbrara no espelho, por um instante, não eram os seus.



Continua...


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Leia também:

Mulher da árvore - Parte 01: O Sonho

Mulher da Arvore - Parte 02: Flores de Laranjeira

Mulher da Árvore - Parte 03: Menininha



Arte: https://i.pinimg.com/originals/07/75/91/07759159905fab46ce0ceeda1654cc7f.jpg



Comentários

Anônimo disse…
Mais um texto incrível. Estou amaaaando, espero a parte 5.
Zoraya Cesar disse…
A Dama das narrativass de Veludo nos premia novamente com um texto de horror aos pedaços sombrios. E nos tortura com a expectativa de um final que, sabemos, não nos decepcionará. Para com isso Nádia! Vou te subornar por um spoiler!
Albir disse…
Se não fosse tão bom, eu me livraria dos sobressaltos e da insônia que o texto me provoca. Mas preciso continuar.

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