A ÚLTIMA CRÔNICA >> Sandra Modesto

Domingo sempre mostra algo nostálgico. Fico meio borocochô. Brigo comigo, faço as pazes, volto e depois me aprisiono. E o Brasil está triste. Cada dia mais triste. Resolvi contar um pouco da minha história... 

Eu sou a filha mais velha de um casamento inter-racial. 

Imagino as inúmeras situações racistas sofridas pelo Carlos. Meu pai chamava-se Carlos. 

Quando ele alcançou uma posição social com um salário melhor, usava muitos perfumes, ternos de linho, abotoaduras, inúmeras canetas. O colecionador de sonhos. 

O racismo estrutural estava lá, escancarado. Em momentos inesquecíveis... 

Nos anos setenta, o diretor do clube social recreativo disse não, quando meu pai quis ser sócio. A resposta: — Aqui é só para gente branca. 

Dez anos depois os acionistas da elite migraram para outro clube mais requintado. E o diretor mudou de ideia. Meu pai conseguiu comprar. Eu e minhas irmãs íamos. O Carlos nunca frequentou. 

Nunca me esqueci de uma cena: A primeira vez que vi meu pai chorar. Eu tinha vinte e sete anos. Até então, pensava que homem não chorava. 

Compreendi. Meu pai não era tão forte, era frágil, era humano, era meu pai. 

Na janela entreaberta do meu quarto, abro meu armário e lá estão alguns terninhos de linho que usei quando fui jornalista, assessora de imprensa. Pego o paletó xadrez que herdei do meu pai. Customizado porque tirei as mangas e apertei a cintura. Tiro meu pijama, visto o blazer. Olho meus perfumes. Escolho um. Fico cheirosa. 

Já escrevi várias crônicas para o meu pai. 

Hoje é a última.

A última crônica. 

Vou ali, ajeitar uma foto no aparador. E chorar um pouco.

Comentários

branco disse…
sempre existe a beleza. toda esta situação (passei por algumas, mas como o cara que estava com o preto), então posso só imaginar...e imaginando chego até sua crônica, que é na verdade uma história, que poderia ser um livro, mas é "apenas lembrança. uma dolorida lembrança que se transformou neste lindo compartilhar. como eu disse, sempre existe a beleza.
Sandra Modesto disse…
Branco, obrigado pela nobreza de seu comentário. Abraços!
Laércio disse…
Quando conheci minha esposa, uma mulher guerreira que por sinal, também era a filha mais velha dessa tal miscigenação que, se clareia, tem um tipo de visão dessa sociedade racista, bem diferente quando se aproxima mais da cor preta. Seu pai, também um negro, de uma honestidade incomparável estava enfrentando uma câncer que os médicos tinham lhe dado poucos meses de vida. Nunca o vi desistir da vida e foram mais de 25 anos mandando as "favas" todos diagnósticos médicos. Então foi ali que vi, naquele momento em diante que existia homens muito mais heróis do eu conhecia nas revistas em quadrinhos que amava ler e trocar na porta de um cinema na minha cidade interiorana. Vi nesse senhor, que passaria a ser meu sogro, muito mais que o Homem Aranha, o Super-man ou Batman. Eu nunca tinha visto nessas revistas um herói negro. Nunca indaguei isso, mas acabava de conhecer um.
Sandra Modesto disse…
Laércio, obrigada por compartilhar a história real. Abraços!
Albir disse…
Nostalgia, pai, saudade, tristeza, Brasil. Ajeite uma foto no aparador e volte. É preciso continuar.

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