SÓ ISSO, DOUTOR? >> Albir José Inácio da Silva


Estou feliz de estar vivo, mas não sei por quanto tempo. Posso sentir através das pálpebras a luz do teto, mas continuo de olhos fechados. Desta vez não vou fazer escândalo para não me injetarem um sossega-leão como ontem.

Mas aquilo não foi culpa minha. Quando acordei no hospital, minha mãe falava com o médico:

- Mas Doutor, o que ele tem?

O médico respondeu uma doença esquisita e grave. Soube que era grave pelo nome. Embora eu não conheça, deu pra notar que é coisa séria. Ao ouvir aquilo meu corpo não me obedeceu mais, as pernas batiam na cama e o braço jogou o suporte do soro no chão. O médico gritou e a enfermeira veio com a seringa. Acordei agora, mas vou deixar que pensem que ainda estou dormindo.

A minha via crucis começou no final de semana quando a família resolveu visitar de carro uns parentes no sul da Bahia. Eu não queria ir porque não estava bem. Mas, como sempre, “vamos, não é nada de mais, vai passar, você precisa espairecer”, repetiam.

A verdade é que nestes vinte e sete anos ninguém acredita muito na minha doença. Ou melhor, nas minhas doenças. Desde criança percebo o risinho diante das queixas. Só minha mãe parece acreditar em mim e mesmo nela às vezes eu percebo alguma dúvida. Minha irmã é a pior, ri da minha nécessaire de remédios que ela diz que é maior que a sua mala. Meu pai silencia, não me defende, e só age quando minha mãe obriga.

Mas voltemos à viagem. Eu me senti mal desde que entramos no carro. As pessoas riam, brincavam, cantavam e eu sofria.  A visita não foi grande coisa, mas o pior foi a insistência para que eu frequentasse passeios e restaurantes. Logo eu que não como quase nada, exceto churrasco e feijoada que eu gosto muito. Mas também me faz mal.

Na volta as coisas se complicaram. Enjoo, calafrio, dormência e já na ponte Rio-Niterói eu desmaiei. Nem vi a chegada ao hospital. Acordei com a pergunta da minha mãe ao médico e apaguei com a injeção.

Antes preciso dizer que não confio nos médicos. E por uma razão simples, eles estão sempre dizendo que a gente não tem nada. Mas este teve de se render às evidências!

Daqui posso ver meu pai e minha mãe conversando com o médico. Agora minha irmã se junta a eles. De vez em quando olham pra mim de cabeça baixa. Devem estar com remorsos. Quantas vezes não acreditaram em mim?

Mas não levo mágoa de ninguém. Se tenho que me despedir das pessoas, quero que fiquem em paz. Só espero que no futuro tenham mais consideração com as reclamações dos outros – ninguém inventa doença! Se não fui melhor, que me desculpem, uma pessoa como eu não pode ser agradável e sorridente o tempo todo. Bem, acho que está na hora de falar com eles.

- Venham todos aqui, por gentileza! – chamo em tom quase solene.

- Um minutinho, filho – diz minha mãe, enquanto meu pai olha um papel que a enfermeira acabou de entregar.

Aproximam-se. Antes que eu diga qualquer coisa, minha mãe me entrega a roupa.

- Você está de alta, filho. Vá se trocar.

O maqueiro empurra a cadeira pelo corredor e eu vejo o médico. Penso que não há mais perigo e tomo coragem para a pergunta que ainda não fiz:

- Doutor, como é mesmo a minha doença? Mitose...Ticose?

- Cinetose. É enjoo, mal-estar, vômito – sorriu o médico. - Isso acomete algumas pessoas quando viajam. Nada de mais!

Sorrio de volta, mas não confio em médicos. Sabe-se lá como isso pode evoluir!

Comentários

Zoraya Cesar disse…
hahaha, q legal, Albir!! Essa sua veia cômica é ótima! E ainda aprendi uma palavra nova. Quero mais desses. O martelo (como diz lord white) q bate tb sabe afagar!
Sandra Modesto disse…
Hahahahah ótima crônica pra uma segunda - feira. Sensacional!
branco disse…
pô albir, isso é sacanagem! que coisa mais deliciosa de se ler, sérgio porto assinaria, penso que millor fernandes também.desta vez você usou seu martelo de carnaval, aqueles de plástico e que tocam buzina quando batem. como se diz por aí, rindo até 2047.melhor que excelente, muito melhor que muito excelente.
Carla Dias disse…
Albir, é ótimo poder se aventurar pela sua escrita. Adoro quando você chega com essa ironia requintada.

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