A LIRA DO DESDÉM >> Albir José Inácio da Silva
O sol entra pela janela
agora livre das cortinas do cuidado. Que são tapetes e móveis quando a alma
precisa de luz? Que venham os raios que consolam a pele.
Lá embaixo o velhinho se
arrisca para viver mais intensamente a insegurança destes tempos. Quero
adverti-lo, mas me calo. A vida não é mais uma ordem.
Da cozinha chega uma voz que
disfarça emoção e urgência pelo celular. “Vovó te ama, viu!”- avisa a vovó.
Na parede a televisão tem
filme de terror, filas de vivos e pilhas de mortos. Não é novidade a escolha de
quem vive e quem morre nos hospitais, mas agora é manchete. Precisamos de leitos.
E de covas.
Chora um a falta do filho
e outro a falta do velório. O terceiro chora a falta da produção e a queda da
bolsa.
Dinheiro e juventude já
não são garantias. Indignidade dessa morte que ultrapassa os limites das favelas
e invade os condomínios. Que ousadia essa desconsideração de classes! É um
escândalo: morre quem não devia, morre quem não está acostumado a morrer.
Olho pra rua deserta, belisco-me
- não, não é ficção!
Ouvem-se os cascos no
asfalto dos quatro cavaleiros. Mas a guerra é desnecessária. As armas ficaram
obsoletas para desespero do mercado. A bolsa despenca. “Vai haver fome, não a
fome silenciosa e envergonhada que ninguém liga, mas uma fome épica, barulhenta,
das ruas e dos saques” – diz o especialista
Mesmo com muitos
sacrifícios, não há sangue nos portais e a sombra entra nas casas. A morte oscila
do possível para o provável.
Enquanto isso, no púlpito,
o imperador toca a sua lira, encanta os fiéis e diverte satanás.
O velhinho chega na
esquina vazia, levanta o rosto para o sinal e espera. Não há carros, mas ele
espera. Não quer outros riscos, quer viver.
E essa vontade de vida é
o melhor que temos pra hoje. O infrator segura a bengala como uma espada e
avança.
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