NÃO PECHINCHARÁS... 3a PARTE >> Zoraya Cesar

Blue Anne aceitou o serviço para matar Muvi Bekke. Assassínio era sua profissão, afinal. 
Só não aceitava que negociassem seu preço.

A 2a parte da história terminou com a entrega do veneno que encomendara. Abriu o pacote.

Uma flask bottle de bolso. No metal frio como a morte que trazia,  fora incrustada uma frase:

Madame, all stories, if continued far enough, 
                                         end in death
                        

Blue Anne sorriu. Doutor titular em química, André era, também, admirador de Ernest Hemingway. E jamais entregava um trabalho mal feito. O frasco era uma obra de arte, do início ao fim. E que fim! Abrupto, indetectável, infalível fim. 

Papa Hemingway
era o escritor preferido do
químico e amigo André,
o infalível.
Sentou-se para meditar e controlar a tensão que antecede a execução de um serviço. 

Pois não é fácil matar. Tinha seus escrúpulos. Não matava crianças ou com crueldade, por exemplo. Matar exige autocontrole, firmeza de propósito, paciência. Só desleixados ou psicopatas matavam qualquer um ou de qualquer jeito. Não ela. 

Uma peruca loura de cabelos lisos, uma prótese que levantava as maçãs do rosto e o batom vermelho-inferno deixaram-na irreconhecível. Um vestido marrom, botas de cano alto e uma jaqueta surrada tipo aviador cheia de bolsos invisíveis, num dos quais guardou sua fiel Luger e, no outro, o frasco. 

Blue Anne. Mortífera, dos pés à cabeça. Pois, em sua mente, toda a estratégia, todos os planos de escape e fuga, todas as alternativas aos possíveis imprevistos estavam traçados. Ela sabia, porém, que, além do plano mais perfeito que pudesse criar, existe um Plano Maior, que escapa aos nossos desígnios. Às vezes, simplesmente, não era chegada a hora da criatura. Às vezes, o profissional é passado para trás - pelo Destino, ou pelo contratante, ou pelos seus próprios nervos.

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O bar estava cheio, naquela sexta-feira igual a todas as outras. Profissionais cansadas da noite. Jogadores sem sorte. Operários indispostos a enfrentar a volta a um lar endurecido pelo dia a dia. Travestis em busca de um pouco de atenção. Mulheres atropeladas pelo tempo, esperançosas por alguém que lhes enganasse a solidão, ao menos aquela noite. Homens antegozosos por uma aventura marginal e suja. Como o Sr. Lauro.

Sentado no canto mais escuro do bar, o Sr. Lauro esperava, ansioso e impaciente, pelo grande momento. Embora estivesse decidido a não pagar nem um tostão além do sinal estratosférico que adiantara. Isso ensinaria àquela bisca da tal agência que todo preço é negociável. Ela faria o quê? “Desmatar” o cantor?

Olhava em volta, achando irônico que Muvi Bekke morresse numa espelunca igual à que ele, Lauro, começara a vida. 

Uma loura cafona veio pedir-lhe que pagasse um uísque. Ele ia lhe dar um safanão, mas mudou de ideia. Encheria a cara de uísque vagabundo e depois transaria, em homenagem à morte e aos velhos tempos. Talvez ela fosse do tipo que aceitasse levar uns tapas. 

Aliás, quando, afinal, aquele inútil morreria? 

Exatamente à meia-noite, Muvi Bekke abriu o karaokê com uma de suas canções mais famosas (muita gente perdera a virgindade ao som daquela música).

Ninguém prestou muita atenção. Uma mulher usou a melodia como boia para flutuar em sonhos passados. Um travesti dançava com sua tristeza no meio da pista.

Durante um agudo especialmente esganiçado (nem todo roqueiro envelhece com o vigor vocal do Mick Jagger), Muvi Bekke deixou um vazio no ar. Colocou a mão no peito. A boca aberta, os olhos incrédulos, os joelhos dobraram, lentamente, sob seu corpo. Ele caiu, inerte. 

Rebuliço. Morto! Tá morto! Gritavam. Alguém que vira muitas séries médicas apalpou o pescoço, encostou o ouvido no peito e assegurou: morreu. 

O Sr. Lauro bebeu sofregamente, feliz, e passou a mão na perna da loura. Uísque barato e mulher vadia era uma combinação que muito lhe agradava. 

- Satisfeito? – A voz da loura estava diferente. Era a tal da Srta. Lanmó. Vaca! Bisca audaciosa!

- Não. E não vou pagar o restante. Por que não explodiu o lugar com essa gente toda? Ia fazer muito mais efeito. Eu nem precisaria ter vindo.

- Porque não foi isso o combinado – Ela jamais aceitaria. Nunca matava ‘inocentes colaterais’. Achava isso aviltante e desprezível.

- Foda-se o contrato e foda-se você e sua agência. Não pago. E ainda denuncio vocês, ele tá morto mesmo - riu, o bafo de uísque empesteando ao ar - Se tivesse negociado o preço...

Blue Anne olhou o copo em suas mãos. Um homem infiel à sua palavra era uma das coisas que ela mais odiava na vida. Contrato é contrato. E, pela Lei dos Contratos dos Assassinos, em caso de descumprimento unilateral por parte do cliente, ela tinha o direito de fazer o que quisesse. 

- Que pena, Sr. Lauro. Terei que me desobrigar do contrato. 

- Hein? Como assim? Ele morreu. 

- Ainda não. Dei-lhe apenas uma dose suficiente para simular um enfarto fulminante. Realizado o resto do pagamento, eu completaria o serviço. Como isso não vai acontecer e eu não gosto de desperdiçar um bom veneno...

O Sr. Lauro sentiu uma aguda dor no peito. Discretamente, a loura levantou e sussurrou em seu ouvido:

- Sabe qual a diferença entre o veneno e o remédio? A dose. E o senhor nunca deveria ter pechinchado meu preço.

Ninguém notou o corpo do Sr. Lauro debruçado sobre a mesa, a cabeça entre os braços, um copo emborcado. E quem notou não se importou com aquela cena tão comum em qualquer bar, um bêbado de cair. 

Até porque estavam todos muito ocupados em ter ataques histéricos, ou em sair sem pagar a conta, ou antes que a polícia chegasse. 

The Balvenie.
Para Blue Anne,
o melhor whisky
do mundo.
Um luxo do qual
ela não abria mão.
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O Sr. Lauro estava certo. O showbiz e a mídia fizeram a festa com a história do  velho roqueiro famoso que caíra na decadência, nas drogas, cujo único bem era um bar sujo, de frequência duvidosa, atolado em dívidas. E cujo empresário morrera nesse mesmo bar, de um ataque cardíaco provocado, talvez, pelo susto. Muvi Bekke voltou à moda.

Blue Anne comprou ingressos para os pais assistirem a um show. Ainda bem que não precisara matá-lo. Ela valorizava os vínculos familiares e gostava de vê-los felizes. 

De sua varanda, apreciando as luzes do ocaso, pensava nas pessoas que não aproveitavam a segunda chance que o Destino lhes oferecia. Sabia que Muvi Bekke não tardaria a se envolver com mulheres perdulárias, bebidas, escândalos. E que voltaria ao ostracismo.

Bebericou seu Balvenie, pegou uma coletânea de Lygia Fagundes Telles (ah, como ela amava LFT!) e apagou Muvi Bekke e o Sr. Lauro de sua mente. 

C’est la vie. 

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Citação
Madame, all stories, if continued far enough, end in death
Death in the afternoon
Tradução livre: Senhora, todas as histórias, se continuadas o bastante, terminam em morte.
do livro Morte ao entardecer.

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Srta. Lanmó - codinome com o qual Blue Anne se apresentava aos clientes. Significa 'morte' em haitiano.

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1a parte do conto:

2a parte do conto:
http://www.cronicadodia.com.br/2020/05/nao-pechincharas-nao-desprezaras.html

Outra aventura de Blue Anne:
http://www.cronicadodia.com.br/2017/12/blue-anne-zoraya-cesar.html
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Imagens 
Ernest Hemingway

Attribution National Archives and Records Administration / Public domain


The Balvanie, whisky
Attribution:Pbrundel at Dutch Wikipedia / CC BY-SA (http://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0/)












Comentários

Marcio disse…
Vou tentar lembrar desse texto, para o caso de algum dia Red Zoraya me oferecer uísque.
Que sorte que eu não bebo uísuqe.
Que pena que minha memória seja tão curta.
branco disse…
muito bom....melhor que muito bom....vou falar só da criatividade do desfecho que é genial...o resto?....bom o resto não é menos que isso.
Érica disse…
Até Lygia Fagundes Telles a criatura lia? Fiquei fã dessa assassina rs
Albir disse…
Se um dia você contar a história de Jack, o Estripador, vou chamá-lo de herói.
Carla Dias disse…
Zoraya, como eu gosto da suas histórias! A perspectiva de personagens tão ricos, alguns que eu espero nunca ter de cruzar...rs. Valeu a espera. ótimo final!

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