A TEIA DE IRENE >> Zoraya Cesar

Vivíamos isolados, numa chácara modesta, nem três alqueires. Nossos únicos parentes eram dois primos de caráter duvidoso.

Durante o dia, eu cuidava da terra, ou ia à cidade tratar dos negócios e comprar novelos de lã; durante a tarde lia os clássicos – sempre no original, claro, era meu orgulho. Minha irmã Irene cuidava dos afazeres domésticos pelas manhãs e, após o almoço, tricotava. Só nos encontrávamos à noite, para jantar e contar como fora nosso dia. Nossos dias eram sempre iguais, mas contávamos assim mesmo. Antes de nos recolhermos, eu ficava a bebericar meu xerez preferido, o Tio Pepe, e a fumar meu cachimbo, absorto em ver Irene tricotar. As mãos de Irene tricotando eram pura arte em movimento.

Era uma ás das agulhas. Podia fazer qualquer coisa com linhas e lãs e creio que nem mesmo Aracne, em sua melhor performance, seria páreo para ela. Doce e meiga Irene. Pequena, magra, pálida. Seus grandes e espantados olhos azuis faziam-na parecer uma frágil boneca de louça. Mantinha cortados rentes os cabelos negro-corvo, e digo, orgulhoso, que era tão inteligente e sagaz quanto a ave que lhe dava cor às madeixas. Todos se enganam com a aparência infantil de Irene. Os primos cometeram esse erro. 

Numa tarde especialmente modorrenta, recebemos um telegrama desanimador, anunciando sua visita. Ora, vejam! Típico deles fazer isso. Nem perguntaram se seria conveniente recebê-los. Desde crianças eram inoportunos, buliçosos e amigos do alheio, se me faço entender. Por que mudariam depois de adultos? Confesso que fiquei nervosíssimo. Não gostava deles nem da confusão que sua estada provocaria em nossa rotina. Irene manteve a calma – como sempre – e deu-me um cálice de Tio Pepe. Tudo daria certo, disse. Senti-me um tolo. Devia saber que Irene cuidaria de tudo.

Foi nessa época que a aranha apareceu. Apesar de vivermos no meio do mato, Irene nunca tolerou a entrada de qualquer inseto, cobra, aracnídeo em casa. Por isso estranhei quando ela não só aceitou a presença da aranha como permitiu que construísse uma teia na parede da sala. Para pegar moscas, explicou-me, sorrindo. Sorri também, sem entender nada. Mas, à noite, distraía-me em vê-las a tecer. Uma lindeza que só!

Ao cabo de alguns dias, percebi que o tricô de minha irmã estava cada vez mais parecido com a trama da aranha. Não poucas vezes Irene levava seu trabalho para a aranha examinar; de outras, sua nova amiga descia elegantemente em seu fino fio até Irene e posso jurar a vocês que elas conversavam.

Então, nossos primos chegaram. Eram irmãos e se odiavam com ferocidade. Só não se matavam porque uniam forças por um objetivo comum: herdar nossa chácara. Irene e eu antevíamos dias difíceis. Não nos enganamos. Comiam e bebiam à nossa custa, bisbilhotavam e desarrumavam tudo. Diziam claramente que a casa um dia seria deles, portanto, não fazíamos favor algum em recebê-los. A coisa tomou um rumo mais sério quando, uma noite, a aranha trouxe, para Irene, um fio de teia vindo do quarto onde os primos dormiam. E foi pelo fio que ouvimos o horror, o horror: estavam falidos. Perderam tudo na jogatina. Não tinham onde morar ou quem os acolhesse. Ficariam conosco até a nossa morte. E se demorássemos a morrer...

Desesperei-me. Irene e eu já não éramos crianças. A presença odiosa deles nos acuava em nossa própria casa. Tinham a maldade e a força ao seu lado. E nós? O que tínhamos?
Eu já não distinguia mais onde terminava a teia da aranha,
onde começava a de Irene.
Sei apenas que elas teciam, teciam, teciam
sem parar.
A aranha, disse-me Irene. E, dando-me uma dose dupla de Tio Pepe, afiançou-me que tudo ficaria bem. Pediu-me que, no dia seguinte, comprasse novelos de linhas de seda. Muitos. Dezenas deles. Nunca a vira fiar com linhas de seda, mas nada perguntei; saberia quando chegasse a hora.

A partir daquele dia, Irene e a aranha passaram a tecer ininterruptamente, teias finas e fortes, que se misturavam, formando uma única trama. Irene nem comia, o que me preocupava profundamente, mas ela apenas sorria e tecia, tecia, tecia. Eu não via a aranha pegar mosca alguma, e isso também me preocupava, não fosse ela morrer e causar sofrimento em Irene. Incansáveis, elas apenas teciam, teciam, teciam. Eu não conseguia dormir. Passava as noites insone, observando-as trabalhar. Não entendia nada, mas vê-las juntas era a única coisa que me trazia alguma paz.

Uma noite – tempestuosa e fria, lembro-me bem – elas, repentinamente, pararam. Teias enormes se espalhavam pelo aposento, indistinguíveis as feitas por Irene das tecidas pela aranha. Silenciosa e delicada como uma sombra, Irene se encaminha até o quarto onde os primos dormiam, roncavam e babavam após a bebedeira, e recobre-os com uma teia, estendendo-a por todos os cantos e com ela vedando a porta. Findo o trabalho, ela, finalmente, dorme. Dormi também.

Acordei com sons abafados e desesperados vindos do quarto dos primos. Tentei entrar, mas a teia transformara-o numa cela impenetrável. Irene interrompeu-me.

- A aranha tem fome – disse, simplesmente – foram muitos dias de jejum.

Nunca abrimos aquele quarto; a aranha sumira. Encomendei outra garrafa de xerez, fumo para meu cachimbo, e voltamos à nossa rotina. Irene, no entanto, continuou a tricotar com fios de seda.

Tempos depois, um policial bateu à nossa porta, perguntando pelos primos. Dissemos a verdade (Irene e eu jamais mentíamos): que não os víamos nem deles tínhamos notícias havia muitas semanas. O rapaz foi embora, mas Irene e eu sabíamos que ele retornaria com mais perguntas e, quiçá, com um mandado para revistar a casa.

Nessa noite, a aranha regressou ao nosso convívio, e as duas voltaram a tecer freneticamente. Teciam uma enorme teia que recobriu a casa toda. Estávamos, agora, em uma fortaleza inexpugnável. Ninguém entrava. Ninguém saía. Nem mesmo nós.

Irene deu-me uma espécie de pijama de teia de seda que me envolvia inteiramente, da cabeça aos pés, e vestiu um igual. Notei que a aranha se enrolava em seus próprios fios. Parecíamos três larvas de borboleta no casulo final. Múmias a se eternizarem pelos anos vindouros.

Senti-me confortável. Um leve torpor me tomava aos poucos. Ouvi, como se de uma longa distância, Irene dizer que nunca mais seríamos perturbados, poderíamos viver em paz novamente. Antes de cair num profundo sono reconfortador, ainda pensei em como era afortunado por ter uma irmã como Irene.



Esse conto faz parte do Projeto Crônica de um Ontem, e foi publicada em 8 de setembro de 2017

Fotos: 
1 - https://pxhere.com/en/photo/484817
2 -TRAPHITHO in Pixabay

Mitologia grega - o mito de Aracne - resumo resumidíssimo de uma das versões: Aracne era uma mortal, tecelã cujos trabalhos eram reconhecidos como perfeitos. E que cometeu a imprudência de desafiar a Deusa Atena para uma competição. Ao ver que o trabalho de Aracne ficara excepcional, Atena, tomada pela fúria, destruiu-o. Deprimida, Aracne tentou se enforcar. Compadecida, Atena resolveu transformá-la em aranha, para que nunca deixasse de tecer. 

Comentários

Se minha irmã lesse isso, teria uma síncope, a tecnologia dela não deixaria chegar na metade da história, rs... Mas não é que algumas coisas que mais nos amedrontam podem também nos salvar?
Errata: em "tecnologia" leia-se "aracnofobia"... prova dupla de que a tecnologia nos trai duplamente, no corretor dos teclados e nos comentários dos posts
Clarisse Pacheco disse…
Caramba, Zô, como foi que perdi essa? Eu achando que estava em dia com suas crônicas...
Adoro perigosos com ares de inofensivos
branco disse…
percebo que a sua maestria já vem de longa data (no caso 3 anos). uma ótima trama, comum ótimo desfecho, na verdade, melhor que ótimo, melhor até que excelente. quanto ao fato de ser inspirado nesse tal de julio, nem fui ver o original, penso que ele já recebeu o seu premio, você o recriou, melhorado, com certeza.
Nadia Coldebella disse…
Lembro disso no TP. Já faz tanto tempo assim?
Erica disse…
Dá vontade de se enrolar na teia e ficar quietinha só esperando o corona vírus ir embora de uma vez por todas... Podia funcionar com a gente... O mundo inteiro protegido pela teia da Irene... Menina, só agora me dei conta de que leio as suas crônicas há um tempão... Tá faltando sair o livro...
Sandra Modesto disse…
Concordo com a Érica. A crônica é misteriosa. Caprichada no tempo. Estou esperando o livro. Cadê?
Albir disse…
Dá pra sentir a alma de Cortázar numa releitura brilhante, o que, entretanto, não me impede de acordar aos berros com a cabeça embolada no lençol.

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