MAIS UMA PARA COMEÇAR BEM O ANO >> Zoraya Cesar

Dizem que, na ordem cósmica, os semelhantes se atraem. Dizem também que, se você quer alguma coisa boa, esteja preparado para pagar o preço justo. E toda essa introdução tem uma razão de ser. De ser pão-duro e espírito de porco, como era o caso de Rivonildo. (Rivonildo mesmo, da mãe Rivadávia e pai Claudionildo).

Rivonildo era chegado aos esoterismos - tarôs, búzios, espelhos d’água, folhas de chá, atabaques, mapas astológicos, sinais de fumaça. Era eclético, nosso amigo. E um crédulo seletivo: acreditava em qualquer um que lhe garantisse serem as forças ocultas as culpadas por sua vida minúscula. Como não se dispunha a pagar o preço justo por uma consulta decente – e como os semelhantes se atraem – só encontrava futurólogos e intermediários do Além dos mais charlatães, que diziam o que ele queria escutar. E, mesmo quando se deparava com um profissional competente a preço de um pãozinho francês (não podemos mais dizer ‘a preço de banana’, agora uma fruta caríssima!), só fazia o que lhe era conveniente. Introdução explicada, vamos à história. 

Todo final de ano era um estresse para Rivonildo. Uma correria insana para participar de todas as feiras esotéricas e procurar quem predissesse o futuro e ensinasse magias miraculosas para abrir os caminhos do novo ano - a preço de chiclete, claro. D. Kaylanny di Marenostrum prometia resolver problemas cármicos, mau olhado, espinhela caída; fazia desobsessão e recebia mensagens dos mortos. Precinho camarada. Rivonildo não resistiu. Marcou consulta. Os amigos tentaram alertar, ponderar, mas ele contra-argumentava que precisava de alguém que o ajudasse a prosperar, não que o empobrecesse; e que, se a pessoa recebe, gratuitamente, um dom de Deus, tem de dar de graça, ou, ao menos, baratinho. (Como aqui se faz, aqui se paga, ao final ele sempre gastava mais pela consulta chinfrim do que gastaria com um profissional competente. Mas, enfim, vá entender as pessoas!)

D. Kaylanny di Marenostrum parecia uma sandra-rosa-madalena: uma mistura de Cigana com Pomba Gira e feiticeira gótica, numa clara demonstração de que misturava as estações. O cabelo, tingido de preto azulado, deixava à mostra extensas raízes louras; as unhas, de acrigel, vermelho chamejante, eram quase tão compridas quanto as do Zé do Caixão. O batom era roxo e os olhos estavam tão carregados de pintura que era de se espantar que ela conseguisse mantê-los abertos. 

Mas deixemos de superficialidades, de julgar pelas aparências. O essencial é invisível aos olhos, e D. Kaylanny tinha por mister – assim ao menos, anunciava – enxergar o que os olhos não veem. 

Esfregou as mãos de Rivonildo, soprou-as e aspergiu-lhes um líquido marrom, supostamente para abrir as conexões com o infinito e além. (Pelo bodum, a conexão era com necrotério, mas, o que sei eu?). Fechou os olhos. Respirou fundo e emitiu um prolongado e profundo hummmmmmmmmmm, balançando o corpo tal qual Stevie Wonder. 

- Você está carregado de maus espíritos. Só tem invejoso no seu trabalho, por isso você não é promovido. Vou fazer uma limpeza de descarrego. Preciso de arruda, sal grosso, carvão, azeite, velas, feijão, arroz, farinha e ovos pra preparar uma comida pro santo. Pode comprar tudo na vendinha aqui ao lado de casa, é do meu marido, ele te dá desconto. 

- Agora, continuou, a vida amorosa – Ela levantou, uma das mãos no quadril, a outra rodando a saia, espalhando um odor mofento e penetrante. Bebeu de uma taça desbotada e ofereceu o líquido para Rivonildo. Ele teve um certo nojinho, procurando um espaço onde colocar os lábios que não estivesse manchado de batom. Mas, rindo histericamente, a Pomba Moça da Esquina mandou-o deixar-se de bestices e beber logo, pra poder arranjar um rabo de saia. 

Odoyá!
Quer favores de Iemanjá?
Não vá, então, fazer como Rivonildo.
Odoyá, mãe das águas!
Rivonildo, impressionado, levou fé. Nem percebeu que, praticamente, pagara uma cesta básica. Afinal, ela nem cobrou os olhos da cara (isso continua muito dispendioso; custa mais que a banana, pelo menos) para fazer tantos trabalhos de abre-ajeita-caminhos.

Quando sua melhor amiga - também chegada a um esoterismo, fazia cursos, frequentava gente decente – soube os detalhes da consulta, teve um ataque. 

“Presepada, circo armado, mequetrefe de uma figa! Um desrespeito com as entidades, um perigo para os clientes, uma pulha desavergonhada”, vociferava. Quase brigaram. Rivonildo deu-lhe as costas e partiu a fazer o que D. Kaylanny di Marenostrum, a Pomba da Moça da Esquina, orientara. Fez do seu jeito, como sempre (embora, cá entre nós, não fizesse muita diferença). 

Para ter sorte

Tentou pular as sete ondas de praxe, mas o mar estava bravio. Rivonildo levou um caixote e engasgou com as uvas. Quase morreu sufocado. 

Para ter amigos e dinheiro

Um vidro de perfume usado, um pente desdentado e os restos de frutas que tinha em casa. D. Kaylanny não especificara que tinha de ser tudo novo; se ele tinha o material em casa, por que desperdiçar? Iemanjá, obviamente, recusou a oferenda e devolveu o barquinho na mesma onda, atingindo, de quebra, a cabeça de um surfista prestes a mergulhar. O surfista deu uns safanões e uns gritos em Rivonildo que, ressabiado, escafedeu-se.
Vai fazer oferenda para um Orixá?
Faz direito, pelAmor!

Para encontrar um amor

A cartomante dissera para oferecer espumante à primeira moça que visse desacompanhada no último dia do ano. Ele quase assim o fez. Em vez do espumante, comprou a sidra mais barata do mercado e, quando a moça tomou, por pouco não cospe em Rivonildo aquela bebida horrorosa com gosto de maçã velha e azeda. Não cuspiu, mas rogou praga: "Tá pensando que aceito qualquer m... porque tô sozinha, seu cretino? Pois você vai passar o ano só encontrando lixo na sua vida, idiota!”

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Depois de tantas desventuras, engodos e sovinices, gostaria de terminar com um final feliz.

A amiga de Rivonildo, bem, vocês sabem, aqui se planta, aqui se colhe. Ela, que não embarcava em furada, passou o ano em companhia de amigos, em volta de uma mesa farta e vinhos de boa qualidade. Iemanjá aceitou sua oferenda e o seu novo ano foi maravilhoso.

D. Kaylanny... bem, vocês sabem, às vezes a punição divina demora um pouco a acontecer. Ela continuou a ser mequetrefe, enganar os trouxas e a debochar das entidades. A ceia que Rivonildo, incautamente, pagou, foi plenamente aproveitada. E ela passou um ano novo muito bom, obrigada.

Quanto a Rivonildo... bem, vocês sabem, às vezes aqui se faz aqui se paga. Ele teve o ano que sua avareza e otarice fizeram por merecer. 

É, eu sei, eu sei. Às vezes eu sou cruel...

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No link abaixo, outro exemplo desastroso de como começar bem o ano (acho que você vai rir): 
http://www.cronicadodia.com.br/2014/01/para-comecar-bem-o-ano-zoraya-cesar.html

E, se quiser saber o que é uma cartomante séria e profissional, o oposto de D. Kaylanny, leia:
http://www.cronicadodia.com.br/2012/05/as-cartas-nao-mentem-zoraya-cesar.html
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IMAGENS

Iemanjá
Page URL https://commons.wikimedia.org/wiki/File:Iemanja_by_ed_ribeiro.JPG
File URL https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/0/06/Iemanja_by_ed_ribeiro.JPG
Attribution: Edribeiroart [CC BY-SA (https://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0)]


oferenda: 
File URL: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/3/3c/Ofrenda_a_Iemanja_desde_arriba.JPG
Attribution Ganímedes [CC BY-SA (https://creativecommons.org/licenses/by-sa/3.0)]

Comentários

Erica disse…
Madame Cruela kkk
Rivonildo vai ter que tomar um Rivotril pra se resolver depois dessa kkk
branco disse…
o pobre e prevenido (pelo menos financeiramente) rivonildo dançou, imerecidamente, mas dançou.no entanto, acho que seria um tanto impossível a existência de um rivonildo e explico: é inconcebível que uma pessoa chamada rivadávia e outra claudionildo se encontrem, tenham um affair ou qualquer outra coisa mais séria, e digam um ao outro "eu te amo rivadávia" e a resposta seja " também te amo muito claudionildo" e como se não bastasse ainda gerassem uma terceira vida. 9s fora, rindo muito, mas pense nos meus argumentos.
Marcio disse…
Se o ano de Rivonildo começou assim, imagino como será a crônica de final de ano, descrevendo suas peripécias em 2020 - isso, claro, se ele chegar vivo ao final de 12 meses.
A taxa de mortalidade dos personagens da Zoraya é das mais altas, sobretudo para os pouco espertos.
céus, gente, quanto trabalho pra nada, havia de se recompensar o esforço do moço, que pode não ser doas mais espertos, mas ainda assim tenta na fé...
Clarisse Pacheco disse…
Me acabei de rir!!! Cigana Pomba Gira Feiticeira Gótica kkkkkkkkk
Anônimo disse…
Esse modelo de tratamento já está obsoleto!
Meu professor resolve quase tudo na porrada mesmo, uns bons tapas ativam os Chakras, etc...!
Para quem viaja principalmente, se estiver com insonia, etc... pegue a toalha molhada do banho e baixe a porrada no colchão e travesseiros do hotel! A energia ruim vaza logo, mas pode ficar impregnada nas paredes, moveis, etc.. ou até voltar para o colchão e travesseiro, portanto só use essa técnica se for ficar um ou dois dias!
Albir disse…
"'Se quer coisa boa, pague o preço justo', ou seja, o mundo exotérico não é para avarentos" - Ismarte
Carla Dias disse…
Sabe que comecei as leituras da última publicação pra cá... Agora entendi a inspiração pra crônica do Albir!
Ando no momento: vá fazendo o melhor possível e vamos ver se volta. Mas todo mundo sabe que pechinchar nos trabalhos não dá certo.
Muito bom, Zoraya!
Zoraya Cesar disse…
Erica - mme cruela foi ótimo kkk, mas eu nao maltrado animais. só gente tb malvada ou mesquinha ahahahaha

branco - my lord, levarei em conta seus argumentos, como, de resto, tudo o q vc diz. Mas, pense comigo: uma pessoa chamada rivadávia e outra claudionildo devem ter apelidos carinhosos próprios e íntimos, não? tipo 'eu te amo vivi', eu tb te amo 'nildinho'...

Sandra - obrigadas!!

Marcio - como sempre, seus comentários são o melhor kkkkk, sempre me fazem rir!

Aninha - 'there's no rest for the wicked". dou chance não. ele podia ter feito melhor kkkk

Clarisse - hahaha, minha amiga, a gente já viu muito dessas, hein?

Anônimo - hummmm a ideia até q não é má, sabe? Acho q vou aproveitar...

Albir! agora li seu texto hahahahahah, Ismarte e Rivonildo se merecem como amigos. Será q Rivonildo foi ao enterro? E, mais uma vez, obrigada!

Carla - hahah, sabemos disso, né Carla? A gente recebe aquilo q dá. Se vc pechinchar, pechincha terá

A todos muito obrigada pela leitura e comentários - sempre generosos!

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