NÃO SE TORNOU UM ASTRONAUTA >> Carla Dias >>


Tinha tudo planejado. Desde muito antes de agora, devidamente planejado.

Hoje mesmo, riscou de sua lista a visita ao pai, morador na casa de seu tio, figura de humor refinado e afiado, que o fez gargalhar muitas vezes nesta vida. Só que o fez chorar ainda mais, miúdo, escondido debaixo da cama, desejando sumir do planeta, nos dias em que o humor se ausentava para que a violência se aprumasse, e o pai pudesse cobrar de sua companheira de vida - a mãe do menino debaixo da cama -, o que não cabia a ela resolver.

Beija a face flácida do pai de humor ácido, imperando com seu olhar altivo e incapaz de enxergar muito mais do que o suficiente para se guiar entre as camas de seus companheiros de viagem em quarto coletivo. O irmão mais velho o chamou de filho ordinariamente desnaturado, que onde já se viu deixar o pai viver seus últimos anos de vida em um lugar feito aquele. Lugar em que o irmão, filho de casamento prévio, de mãe zelosa e afetuosa, nunca esteve. Ele que ganhou pai postiço que o aceitou feito filho, pagando-lhe a comida do diariamente, assim como roupa em dias de inverno.  A vida dele pode até não ser fácil, mas as suas dificuldades, quase todas elas têm solução.

A mãe dele faleceu há alguns anos. Mulher habituada à infelicidade, viciada em filmes românticos, passava os dias na frente da televisão, sonhando sem e tornar quem jamais se tornaria. Ele cresceu independente na sobrevivência, cuidando de si como podia, mas completamente dependente do rancor que aquele casal dividia apaixonadamente. Ele era efeito colateral da relação indigesta de seus pais, um pária na sala de estar, um incômodo na cozinha, uma criança manhosa que insistia em chorar de fome, frio e carência.

Quando a mãe morreu, de doença que ele nem sabia qual, ele já adolescente se rebelou e faltou ao enterro dela. O irmão mais velho - distante geográfica e emocionalmente – o acusou de tudo o de pior se pode acusar uma pessoa. A verdade é que ele não sabia como se despedir dela. Como dizer adeus a alguém que não se conhece; que sempre lhe ofereceu repulsa, quando não a mais voraz indiferença?

O enfermeiro dá notícias sobre a saúde dele, esclarece que falta pouco para que ele vá para o céu. Ah, o céu... Aquele que ele vislumbrava durantes as horas que passava no balanço daquela árvore do quintal de sua casa. Foi nessa contemplação que sonhou ser astronauta. Mas, de acordo com a mãe, ele jamais se tornaria algo que prestasse nessa vida, imagine um astronauta.

Despede-se do enfermeiro, lança um último olhar ao pai, que com a boca incapaz de se abrir para dar espaço à delicadeza em palavras, oferece a ele um palavrão na despedida.

O irmão mais velho esperneou, porque não queria ser ele o responsável pelos cuidados com o pai. Mas a mãe dele, aquela senhora gentil como jamais vira, disse que eu poderia ficar em paz, que ela mesma trataria dos pagamentos da casa de repouso e de qualquer eventualidade.

Lembra-se bem do dia em que planejou tudo. Escreveu uma lista de afazeres para alcançar o objetivo. Tinha onze anos de idade e lia um livro que pegou na biblioteca da escola. Encantou-se pelo personagem, que insistia que sua vida mudaria de rumo no dia de sua morte. Ele decidiu que queria fazer a mesma coisa que o personagem, mas não entendia nada de morte. Mesmo depois de ler o significado da palavra no dicionário, ficou sem entender como tirar a própria vida mudaria o rumo dela? Afinal, fim é fim.

Durante os anos seguintes, seguiu completando as tarefas daquela lista. Aprendeu outro idioma, estudou economia, por conta mesmo, que precisava aprender a lidar com o pouco dinheiro que fazia como empregado do mercadinho do bairro.  Assistiu a dez filmes clássicos, graças à paixão do patrão por cinema. Mas diferente do personagem do livro, gostou apenas de sete deles, não dos dez. Leu a obra completa dos escritores que o personagem citou, escutou os discos que ele escutou e muitos outros. Beijou a moça chamada Luana, mas foi com a Maria Helena que conheceu os rompantes da paixão. Viajou - mochila nas costas - pelas cinco capitais que o personagem visitava frequentemente.

Os anos passaram e seu pai já não conseguia fazer com que ele corresse para debaixo da cama, apesar de continuar um mestre na arte de incitar infelicidade. O irmão mais velho insistia que ele tinha de tomar tino, que era filho e tinha de cuidar do pai. Ele cuidou e durante muitos anos. Foi para a faculdade e se tornou competente arquiteto, como o personagem do livro. Penúltimo item da sua lista.

Durante meses, debruçou-se sobre a lista que fizera aos onze anos. Leu o livro dezenas de vezes, buscando ali um desfecho que não fosse o suicídio do personagem. Essa lista o tornara apto a seguir adiante. Ela foi sua sustentação em dias debaixo da cama, escutando a violência passear pela casa, aos berros, aos socos e pontapés. Ele tem certeza de que, não fosse ela, ele provavelmente teria antecipado o desfecho da história.

O irmão mais velho se diz cansado, que a vida é dura demais, as pessoas são complicadas. Diz isso sentado em seu sofá confortável, os filhos brincando na sala de casa própria, a esposa revendo papéis do trabalho, à mesa da cozinha, após um agradável jantar. Há uma calma nessa casa que ele nunca reconheceu em outro lugar.

Também diz que ele é que tem sorte, que é jovem, saudável, tem um bom emprego. Vê em seu irmão mais velho a sombra de seu pai. A mãe foi a salvação dele, que se tornou uma pessoa que reclama sem motivos, que não teve de viver para entender o peso do desafeto, da miséria, da violência. O irmão assistiu a tudo de longe, o que lhe permite dizer que ele é um cretino por deixar o pai naquele lugar para cair no mundo, abandonando a família e a segurança de um bom emprego.

Convenceu-se de que teria de viver essa última parte da história naquele dia, aos onze anos de idade e o espírito estraçalhado pela solidão. É sim daqueles que cumprem promessa. Por isso partiu para o lugar mais bonito que conheceu, cenário perfeito para o desfecho de acordo com o livro.

Neste dia, a morte foi inevitável. Finalmente, ele compreendeu como ela era capaz de mudar o rumo da vida. Porque, ao colocar os pés naquele lugar – tão distante de onde sua vida se desenrolou e de horizonte exuberante -, o menino de debaixo da cama pulou da ponte, do jeitinho que o personagem do livro fez, restando a ele viver o adulto que se tornou: sem lista de afazeres existenciais, livre da influência sombria daqueles que jamais lhe perceberam pessoa, que se negaram a cuidá-lo com a mesma dedicação com a qual tentavam lhe vergar o espírito.

A mãe tinha razão, ele não se tornou astronauta. Mas tudo o mais que ele se tornou vale a pena ser vivido.



Este texto faz parte do projeto "Crônica de um ontem" e foi publicado originalmente no Crônica do Dia, em 20 de maio de 2015 

Comentários

branco disse…
pela data da publicação constato: o dom sempre foi seu.
Zoraya Cesar disse…
Lembro desse, Carla, e a emoção foi a mesma. Essa foi uma semana de relembrar crônicas que nos espantam e nos marcam.
Albir disse…
Esse projeto cumpre o papel de mostrar que seus textos não devem ser lidos apenas uma vez. Sempre se encontrará mais.
Carla Dias disse…
Branco... Obrigada. :)

Pois é Zoraya, às vezes é bom dar uma olhada no que foi dito/escrito. Revisitar acontece de ser preciso.

Acho bacana esse projeto, Albir, até porque procuro textos que não foram comentados, que, acredito, ainda tenham espaço para a leitura.

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