EU MATEI MEUS PAIS >> Sandra Modesto













Vinte e dois de outubro de dois mil e dezenove. 

Dezesseis horas e vinte e dois minutos. 

Uma terça- feira de uma tarde indecisa entre o céu e o inferno. 

Faltam dez dias pra eu matar meus pais. 

Elegia aos meus... 

Na minha cidade interiorana, o propago anuncia em alto e bom som pelas ruas: 

“Nota de falecimento e convite para o sepultamento”. 

As pessoas de ouvidos atentos sempre que o carro passa. Numa voz eloquente o moço fala- “a família de (Quem morreu), e lasca o convite à população”. 

Tem gente que já fica louca e celebra: “Nossa! Que tristeza!”. 

Tem gente que não está nem aí, tem gente que chora, tem gente que escreve. 

Eu escuto a ladainha do moço do propago desde menina. Hoje velha eu já pedi: 

- Por favor, sem propago, sem lamúrias, sem velório duradouro. 

Mas estarei inerte façam o que quiserem. 

Dia vinte e oito de junho de 1997 as zero hora, meu pai morreu. Aos 57 anos. 

Velado na sala da nossa casa. Oito meses depois, minha mãe esticada no mesmo lugar. 

Desde então eu perdi um pouco de mim a cada dia. 

Ontem no dia dos mortos, eu não vi meus pais. Comprei flores e minha irmã levou aos túmulos. 

É sempre assim. Não vou. 

Encontro meus pais no porta – retrato. Na foto decorando o aparador amarelo, meu pai de terno, minha mãe com uma blusa dourada. O jeito lindo dela. O olhar inebriante e vencedor dele. 

Eu matei meus pais porque no lugar que um dia jogaram terra agora têm ossos, restos, caveiras. Sei lá. 

Meu pai era negro. Minha mãe era branca. 

Meu filho é negro. O único neto da cor do meu pai. 

Minha filha é branca. Tem o nome da avó tatuado nas costas. 

Quando eu olho para o sol quando a lua está cheia, nova, crescente ou minguante... 

Paro por alguns instantes. E vejo meus pais.

Comentários

branco disse…
muito bom, lindo demais. enquanto isso nossos internos pôres do sol parecem nos dizem....até um dia !
Albir disse…
Eu também, Sandra. Nunca voltei ao cemitério para ver meu pai. Eu o vejo em todos os lugares, menos lá.
Nadia Coldebella disse…
Sempre achei q velorio e enterros nada tem haver com a vida de quem viveu. E dia dos mortos pra lemhrar é meio q arrumar a casa pra mostrar pras visitas q ela é bonita Muito lindo e sensível seu texto, principalmente principalmente pq diz q saudade não tem dia marcado.
Laércio disse…
Fui ter esse sentimento nós dois últimos anos. Também não gosto de visitas aos túmulos. Mas sinto falta e quando tô mais triste recorro as minha lembranças em me dói menos. Fotos deles sorrindo como a dizer viva sempre do melhor jeito porque tudo nessa vida é muito curto. Belíssima crônica. Será que também matei meus pais?
Zoraya Cesar disse…
Sandra, chorei. Tb não vou a cemitério. Minha avó está comigo todos os dias, pq vou visitá-la lá, no cemitério, onde ela não está? obrigada por esse moemtno sensibilíssimo. Pra ler todo ano.
Sandra Modesto disse…
Obrigada, Branco,Albyr, Nádia, Zoraya e Laércio. Gostei muito dos comentários.
Carla Dias disse…
A morte é um desafio para a nossa capacidade lógica. Mas pensar em permanecer no mesmo lugar, depois de abraçá-la, nunca me agradou. Se quiserem me visitar, depois de a morte me levar, que olhem nos olhos da vida.

Lindo texto, Sandra, sobre ausências presentes.
Lindo e sensível esse texto. Eu também nunca voltei ao cemitério depois do enterro da minha mãe. Sei que ela não está lá..

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