GOTINHAS DE CHUVA >> Nádia Coldebella

O barulhão das nuvens agitadas fez Aninha olhar para cima. Plim! Uma gotinha caiu suavemente no seu nariz. Era uma coisa pequena. Bem pequena. Praticamente imperceptível. E bem sem importância. Então ela resolveu esquecer e voltou a brincar na areia do parquinho. 

 Cavou um buraco com as mãos e colocou a Barbie deitada dentro. 

 - Fica aí, Flor. Tem gente na porta - Ela havia feito um quadrado no chão e entrara dentro. Brincava de casinha. - A mamãe não está. Dá licença que a Flor tá me esperando.- disse de cara fechada, fazendo de conta que estava brava pelo incômodo. 

 Aninha alisou primeiro seus cabelos há dias sem pentear. Depois, fez o mesmo com os cabelinhos de plástico da boneca, ajeitando sua roupinha. O vento havia trazido algumas folhas que a criança depositou, sistematicamente, sobre ela. 

 - Vamos cobrir você. - e colocou a última folha sobre o rosto da Barbie. 

 Tirou de uma caixinha de plástico o seu achado da tarde: uma colher minúscula, dessas que se usa para mexer café. Com ela, começou a jogar areia sobre o brinquedo. Era uma quantidade pequena de cada vez. Bem pequena. Mas a criança era paciente e estava absurdamente concentrada. 

 Ela desviou o olhar apenas quando escutou o escândalo do trovão. Sentiu outra gotinha, só que agora no braço. O céu estava adquirindo aquela expressão zangada, escura e triste dos dias ruins em que a mamãe não deixava ela sair pra brincar. 

 - Acho que vai chover, Flor. - Ela olhou para a babá que, de cara grave e olho fixo na tela do celular, não se mexeu - Essa babá nova não é nem babá! - Não era mesmo. Era uma vizinha que tinha aparecido e se oferecido para passear enquanto o papai resolvia o vazio cheio de gente que a mamãe tinha deixado. 

 Aninha respirou fundo, bem fundo mesmo, e voltou a encher o buraquinho de areia com a colher. Cobriu toda a boneca e bateu bem a areia com a palma das mãos, para compactá-la. Com algumas pedrinhas, circundou o buraco. Quebrou um galhinho em forma de cruz, mas o deixou de lado para atender a porta de mentira. 

 - A mamãe não está, eu já disse. Ela foi embora pra sempre. - Mesmo sendo faz-de-conta, agora estava zangada de verdade. Voltou ao buraco circundado de pedrinhas e espetou, com força, a cruz feita com os galhos sobre a cabeça da boneca enterrada. 

 Aninha não se assustou com o estrondo que anunciava a tempestade e nem ouviu os gritos da vizinha-babá, chamando para ir embora. Seus pensamentos estavam longe.

Arte: Nádia Coldebella

Olhou para o céu e logo abaixou a cabeça, virando o rosto, magoada. Ela era apenas uma coisa pequena. Bem pequena. Praticamente imperceptível e sem importância. Deixou-se ficar, mas quando o céu desabou, suas lágrimas se misturaram com as insignificantes e abundantes gotinhas de chuva.




Muitas pessoas acreditam que crianças não compreendem a morte e, por causa disso, muitos adultos evitam conversar francamente com ela, por medo de que qualquer coisa relacionada a perda possa vir a ser prejudicial. O fato é que perder alguém pode significar, para a criança, desamparo e impotência, pois ela pode sentir-se abandonada por aquela pessoa que amava. 
Crianças são muito resilientes e não devem ser subestimadas. É importante esclarecer os acontecimentos, sem fantasiar ou atenuar, permitindo. assim, que ela reconheça a realidade, sinta a dor da perda e despeça-se de quem ama. Permitir que ela relembre a pessoa que partiu e se expresse, a ajuda a superar adequadamente a perda.
 Se a perda é de uma figura parental, é importante que os adultos próximos forneçam-lhe suporte contínuo - as vezes por anos. Circundada de apoio e compaixão, ela, aos poucos, encontra significado para a perda e elabora o luto de forma saudável.

Comentários

Anônimo disse…
Adorei o texto. Já enfrentei situação semelhante a menina e consegui elaborar o luto, o que me ajudou a entender e a enfrentar a perda da minha mãe.
Zoraya Cesar disse…
Texto lindo e poético, Nadia. A transição de gotinhas para a trovoada foi perfeita. Custei a entender o 'mamãe nao está". Perfeito. E a arte está linda!!! Quero uma pra mim!
Rita Bezerra disse…
Lindooooo! Parabéns!!!! Muito expressivo!!!
Heloisa disse…
Sempre muito interessante seus textos, os plot twists sempre são geniais!
Ansiosa pelo próximo.
Karina Lopes disse…
Lindo texto Nádia, emocionante e significativo!!!!
Anônimo disse…
Nadia!!! Voce e demais.... como consegue escrever um tema tao dificil com tanta leveza!!! Amando seus textos!!! Sentindo um cheirinho de livro no ar.... linda ilustração!!! Bj grande. Clicie
Sandra Modesto disse…
Parabéns! Umas sacadas geniais na narrativa. A reviravolta no enredo é maravilhosa! Cinematográfica.
Albir disse…
Parabéns, Nádia! Belíssimo texto com direito a orientação terapêutica.
[ W ] A L Y N disse…
Arrepiei até o o último fio de cabelo da cabeça, dos parcos que ainda sobraram. Foi lindo, comovente e delicioso
Esta crônica. Parabéns nadia, por singelamente nos mostrar a linguagem simbólica do luto, mas mais
Importante ainda vem a explicação: ensinar à criança a compreender e ressignificar estes sentimentos de perda ligados ao Adeus de quem nunca mais irá voltar! Espetacular!

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