SABE OU NÃO SABE? >> Albir José Inácio da Silva


Sabe o Dito - Benedito de batismo, Bindito pra mãe e maldito para os demais - que deve ser a sétima geração desde que chegaram ali. E sabe de maneira muito mal sabida porque ninguém gosta de contar e as histórias misturam os ascendentes.

Sabe o Dito que nasceu livre, mas os primeiros tinham sido cativos até serem alcançados pela bondade da princesa. Há cento e trinta anos carregam essa liberdade e Dito sabe que tem de ajudar a carregá-la porque já nasceu com ela.

Sabe que vieram de muitos lugares depois da liberdade e traziam fome, trouxas, filhos e barrigas. E outros vinham de guerras, crimes, perseguições e ameaças. Fugiam de grilagens, dívidas, maridos, polícias e amores proibidos.

Sabe que foi assim que chegaram naquela pirambeira que ninguém queria, cheia de pedras, espinhos e favas. E continuaram chegando porque cabia todo mundo e todo mundo estava no mesmo barco. E ergueram galhos, caixotes e panos que desafiavam o vento. Carregaram água de barro e ferrugem que nem pra sede chegava.

Sabe que ergueram cruz e baixaram oferenda só porque chegaram e podiam desfrutar dessa liberdade de dormir sem esteira, trabalhar sem boia, sem fruta do mato e sem água da fonte.

Sabe que depois chegaram também novos capitães do mato fardados e ferozes que proibiram oferendas, quebraram instrumentos e orixás. Porque a Mãe-África é do mal e o bem não gosta de branco nas roupas.

Sabe que algumas vezes foram expulsos para senzalas mais distantes sempre que aumentou o preço do metro quadrado e o incorporador enxergou ali possibilidades. Ou quando a cidade queria apagar suas manchas. Ordem, progresso, higiene e estética são as marcas da administração pública.

O Dito sabe que que na sua linha ascendente ninguém teve muita sorte. Os homens morrem logo de medo, de bala, de doença boba ou ficam na cadeia até muito velhos.

Mas Dito ainda tentou. Insistiu na escola por causa do bolsa-família da mãe, mas olhava o quadro sem entender. Foi servente, mas não compreendia as ordens. Foi cabo eleitoral, mas lhe passavam a perna e trabalhava de graça. Quis empreender, mas os capitães tomavam sua mercadoria. E achava-se muito burro para golpes e trapaças.

Restava-lhe o tráfico. Não queria porque não se pode sair, mas não querer não significa nada. Foi conduzido ao cargo mais baixo do plano de carreiras porque não sabe mesmo fazer tarefas complicadas. Mas as coisas não vão bem.

Sabe o Dito que uma bala perdida dos seus companheiros ou dos novos capitães talvez o livre dessa tal liberdade. 

Só não sabe dizer se não é isso que quer.

Comentários

branco disse…
Este comentário foi removido pelo autor.
branco disse…
deixemos de lado as palavras desnecessárias, refazendo meu comentário.
grande, absolutamente grande !!!!!!!!
Zoraya Cesar disse…
Sucinto e contundente, Albir. Mega.
Albir disse…
Obrigado, Branco e Zoraya.

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