CORAÇÃO BLUE >> Sergio Geia


Cinza-chumbo, escuro-noite. Foi a primeira coisa que vi ao acordar, com meus lábios de areia: céu escuro emoldurando um desenho de coração azul; surreal, poético. Ainda que não fosse poético o desconforto da noite maldormida, cama improvisada, dura, e agora, sinto, e me castiga, vento frio que vem do mar, borrachudos que de madrugada, conhaque em ação, nem senti. 

Azul tão promissor; humilde, okay, mas desenha em mim uma esperança tão boa, de que nem tudo está perdido, de que a poesia salva, assoprada por um simples pedaço de céu. Mesmo com chuva vindo, vento gelado, mas quem sabe? Mesmo com toda a ascendência do exército cinza, me animo em dizer que um tiquinho só, azul, com desenho de coração, às sete da matina, é sinal de esperança. 

Viva a poesia!, grito, deitado, assustando pessoas que gostam de começar o dia espiando o mar. Viva Branco! Viva Carla Dias! Viva Cristiana Moura! Viva Kleber Albuquerque! Vivam Cecília, Bandeira, Drummond! Viva o Oficina!, e levanto a garrafa de conhaque para o brinde solitário, confirmando o pensamento alheio de que um bêbado desvalido esperneia na praia. 

Mas ainda que isso não aconteça, a beleza de uma tela Jackson Pollock já vale o ingresso: abrir os olhos, ver o desenho pintado a giz, som de mar. O mar que hoje não é amigo; é ranheta, tipo ressaca braba, que se veste de azul pálido, tão pálido que é quase verde, verde-musgo que parece dizer hoje não, amigo; acordei de pá virada, não quero ver sua cara nem a de ninguém. Vá andando, saia, desapareça. 

Sento, puxo um cigarro da mochila, acendo. Fico assim, meio nóia, fumando, vendo o céu, nuvens escuras, o coração em frangalhos. E me vem tanta esperança, mesmo sendo Brumadinho a minha realidade e não Honolulu ou Amsterdam. 

Ao longe, jovens se tocam. Cena bonita. Num mundo de lodos e rejeitos, enlaçam-se primeiro mãos, tocam-se mãos, olham-se em mãos, sentem-se em mãos, mãos, mãos, mãos, depois ele leva as mãos dela aos lábios dele e beija, sorrisos frescos. Em seguida, suavemente, ele penetra a mão por debaixo da blusa dela até achar o seio. Encanta-se, extasiado com tanta beleza, pedacinho de carne tão tenro, firme e proibido. Delicadamente ela retira a intrusa mão, ambos dizem qualquer coisa, se divertem. Devem fazer planos, casamento, viagens, filhos, afinal, todo jovem casal faz. De repente, bem slow motion, aproximam-se lábios, beijo delicado, mãos. 

Começa a chover. Pingos finos, primeiro; chuvinha miúda coada em peneira. Depois grossos. Todos somem. Hora de levantar acampamento. Guardo tudo e, mochila nas costas, dou uma última olhada no mar. Avisto um toldo de restaurante do outro lado da avenida. Encharcado de água e poesia e solidão, sento no degrau, retiro o conhaque da mochila, tomo um gole pra esquentar, outro cigarro. 

Bate tristeza mas nem ligo (pelo menos tento). Enfio a mão no bolso e descubro uns trocados. Espero a chuva passar, mas os segundos passam, os minutos passam, quase hora e ela não. Saio. O volume de água aumenta, quer me pegar, correntezas me conduzem. Paro debaixo de outra cobertura. Três sujeitos se juntam a mim, me encaram. O de barba pergunta se tenho bebida. No instante em que retiro o conhaque eles me derrubam, puxam a mochila, me dão chutes na cara, correm. Não aguento correr. Tenho um corte no supercílio que sangra. Levam mochila, mas deixam os trocados amassados no bolso. 

Pintando a calçada de vermelho, lágrimas e chuva bem Kid Abelha eu vou. Olho para o céu em busca do coração azul. Busca inútil. Só chuva, frio, dor, solidão. E nenhuma poesia. 


Ilustração: https://br.freepik.com/fotos-premium/explosao-abstrata-de-po-vermelho-sobre-fundo-preto-coracao-vermelho_3454120.htm

Comentários

branco disse…
Serginho, você está ficando abusado garoto. Sua crônica está em algum lugar entre o fantástico, o espetacular e a simplicidade complexa. Conseguiu me fazer "entrar" nela, me deixe ficar mais um pouco, e isto é uma ordem !!!!
sergio geia disse…
Viva a poesia! Viva Branco! Obrigado, amigo, que elogio estimulante, que alegria! Tamojunto!
Zoraya Cesar disse…
Sergio, foi tão sensacional que passei o texto inteiro na dúvida se era ficção ou realidade. E me decidi pelos dois. Maravilhoso!!!! Concordo com o Branco. Vc abusou. E viva a poesia das Meninas do Crônica, do Branco e do Fogaça (o Principe das Entrelinhas). E viva a sua poesia, braguiana.
sergio geia disse…
Zo, brigadão. Grato mesmo pelos seus comentários sempre carinhosos. Você acertou em cheio: ficção e realidade se misturam. Beijos mil!
Albir disse…
O texto tem toda a poesia que você não encontrou no céu.

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