PERTENCIMENTO >> Carla Dias >>


Aqui não é lugar para ele. Ele não pertence ao aqui. Mesmo que apresentem uma lista de sedutores motivos, na tentativa de provar que aqui combina com ele, e vice e versa, ah, se pudessem sentir o quão sofrível é para ele estar aqui, desistiriam desse desejo de convencimento.

Aqui pode ser bom e saudável para muitos. Para ele, é prisão. E traz esse silêncio que ele não consegue calar, ainda que já tenha se aventurado a tentar quebrá-lo aos berros. Você já tentou abandonar um aqui onde foi colocado? Tentou redesenhar o cenário? Reescrever a trama?

Aos poucos - tão lentamente que o tempo passa lerdo, mas é como se ele passasse desesperadamente -, ele vem construindo a coragem necessária para despir-se do aqui. Tem sua própria lista, na qual anotou tudo o que fará nesse dia de catarse providencial. Depois que se livrar dessa prisão – ela que tem design de vida promissora –, ele não voltará mais ao aqui. Porque aqui tem feito a tantos felizes, mas a ele, nem a chance de tentar essa tal de felicidade tem sido oferecida.

Contudo, não é tão fácil se desvencilhar dessa história. O aqui não pertence a uma geografia. Não há como resolver a partida somente com um novo logradouro, a emissão de um visto, mudança de continente. Não tem a ver com idioma, cenário financeiro, o quanto de mar há entre a pessoa e o aqui.

A complexidade se esbalda no aqui ao qual ele foi conectado.

Ele se ressente de si a cada dia. Para ele, abandonar esse lugar é realizar um feito, no qual moram tantos desejos, cultivados ao longo de anos orbitando o aqui, sentindo-se desprovido de identidade, enquanto os que o têm acompanhado o aplaudem.

Por quê? Qual o mérito de ser sem ter sido? Revolucionar desinteresses?

Há quem escolheria se beneficiar de uma biografia feito a dele. Quem se voluntaria a viver algumas de suas histórias. Quem aproveitaria melhor o aqui onde ele nem cabe, mas foi competentemente anexado.

Não que ele tenha se tornado uma pessoa vazia, incapaz de se envolver com o oferecido, de cativar afetos, de vivê-los. O aqui não tem a ver com a honestidade de seus sentimentos, mas com a inexpressiva atuação de seus libertários desejos.

Quando sair do aqui, ele deixará muito para trás. Deixará muitos. Para ele, sempre tão bem-comportado no seu aqui, não é decisão fácil, de se tomar na rebeldia das emoções. Seria tão mais simples se assim fosse. Ele vem planejando isso, desde há muitas escolhas. Foi desafixando o olhar do óbvio que se percebeu encaixado, não pertencente.

O aqui de cada um, o tal lugar onde nos permitimos ser. Há quem leve uma vida nessa busca, sem nunca alcançar destino. Há quem a esqueça em minutos, depois de percebê-la, tamanho incômodo chega com tal percepção. Há quem, feito ele, gaste todo seu tempo arquitetando uma saída que não fira aos que aprendeu a amar. Ainda que, intimamente, ele saiba que alguém sempre sairá ferido de uma empreitada desse naipe.

Mudar desarranja o hábito, e, nesse momento, desarranjos o encantam.

Cansou-se de protelar. Desejou pertencer, mas não a esse aqui no qual foi encaixado por conveniência. No qual aprendeu a existir segurando o grito.

Gritou.

Imagem: A friend of order © René Magritte

carladias.com

Comentários

Anônimo disse…
Magnífico! Perfeito desenvolvimento de um belo texto. De mestre!

Abraços,
Enio.
Albir disse…
Conveniência de outrem sempre sufoca o grito e afasta o pertencimento.
Carla Dias disse…
Enio, obrigada!

Pois não é, Albir. Às vezes, ser necessita de grito daqueles. Outras, salve o silêncio escancarado.
Zoraya Cesar disse…
MARAVILHA de conto, D. Carla Dias, sua abusada de boa! sufocante na medida certa. Deu vontade de gritar no final. MARAVILHA!
Carla Dias disse…
Zoraya, Zoraya... Obrigada, minha cara. Beijos.

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