PEITINHO DE PITOMBA >> Sergio Geia
Fui
reunindo pérolas pelo caminho.
Pitomba.
Fruta. Pequena. Um tantinho maior que uma bolinha de gude. De cor laranja
quando madura, incomum aqui. Eu pelo menos nunca vi. Mais fácil de encontrar em
cidades do Norte, Nordeste. Dizem que em Pernambuco tem de monte. Lembra muito
a lichia, sem a mesma suculência. Você quebra uma fina casca que a reveste
(pode ser com os dentes), põe na boca o caroço amarronzado, coberto por uma gosma
transparente, a polpa, e chupa. Adocicada e levemente ácida, também serve de
alimento para diversas espécies de aves. Sua árvore é muito utilizada na
recuperação de áreas degradadas.
Ambular.
Verbo intransitivo que significa andar sem destino, à volta, vaguear, passear,
girar, deambular, perambular. Confesso que não o conhecia, e o achei lindo.
Povaréu.
Plebe, poviléu, povo, multidão, turba, grande número de pessoas, povão.
Bugigangas.
Bugiaria, quinquilharia, insignificâncias.
E
preciosidades metafóricas como “o pregão abre o dia”, “o povaréu sonâmbulo
ambulando que nem muamba nas ondas do mar”, “cidade maravilhosa, és minha, o
poente na espinha das tuas montanhas, quase arromba a retina de quem vê”, “de
noite, meninas, peitinho de pitomba, vendendo por Copacabana as suas
bugigangas”, que até saio cantando.
Caminho
esse a que fui levado outro dia — essa fantástica declaração de amor ao Rio —
por um texto do Álvaro Costa e Silva, publicado na Folha, que fala da rua da
Carioca, cenário para o clipe “Carioca”, do Chico:
“Você se lembra do clipe: Chico Buarque está sentado numa
mesa de bar antigo —o fictício Polytheama— e a cidade se descortina diante de
seus olhos cor de ardósia. Trajando vistosa camisa de gola rulê, Chico suspira,
fuma um cigarro, bebe uma taça de vinho, come uma pera, ri às escâncaras, enquanto
escreve a letra da canção ‘Carioca’. Canta: ‘Gostosa, quentinha, tapioca/ O
pregão abre o dia’. O cenário exterior, filmado através de um espelho falso, é
a região entre a rua da Carioca e a praça Tiradentes, trecho da rua Ramalho
Ortigão, imediações da igreja de São Francisco de Paula. Ao contrário do que
narra a música, o povaréu não é nada sonâmbulo: está em movimento, esperto, agitado.
Uma moça sai do carro falando no celular e exibindo belas pernas, um homem
carrega um burro-sem-rabo, outro prega a Bíblia para os transeuntes, um
tiozinho confere a elegância no reflexo da vitrine. Em preto e branco, o filme
tem direção de José Henrique Fonseca, Arthur Fontes e Fábio Soares. Foi rodado
em 1998, para o lançamento do disco ‘As Cidades.’”
Mais
do que pérolas largadas pelo caminho, o que encontro em “Carioca”, e que me dá
prazer, é um combinado de ingredientes, que pelas mãos de um chef talentoso, capaz de produzir dia a dia uma iguaria mais gostosa que a outra, se
transforma num prato fabuloso de fina poesia, com recheios e molhos que me
enlevam, exaltando as maravilhas de uma cidade maravilhosa.
Não
é de hoje que as letras de Chico estão cheias de palavras que parecem escolhidas
a dedo (pelo menos é essa a sensação que dá ao toparmos com “Carioca”). Como já
disse um de seus músicos, as palavras de suas canções têm o som das notas, e são
únicas. Chico consegue equilibrar com perfeição palavras elegantes, incomuns em
letras de música popular brasileira como “errantes”, “amiúde”, “sem porvir” e
“iniquidade”, presentes em Geni e o Zepelim, com a coloquialidade da velha
crônica, como “cair um toró” ou “pintou uma chance legal” ou “dancei com uma
dona infeliz, que tem um tufão nos quadris”, presentes em Bye, bye, Brasil,
criando uma atmosfera musical sofisticada e única.
Não
tenho dúvida de que sua produção é um repertório inigualável de espécies
vocabulares muitas vezes ocultas nos becos e meandros do nosso dicionário de
língua portuguesa.
Ouvir
Chico é sempre uma experiência superior.
Em
todos os sentidos.
Comentários