AVE, DIVINO! >> Albir José Inácio da Silva
Escultura do artista dinamarquês Jens Galshiot.
Uma justiça obesa e mórbida que o povo carrega.
“Não há hierarquia nem
subordinação entre advogados, magistrados e membros do Ministério Público”, diz
a lei. Mas o que importa para os deuses a lei dos homens?
Sua Divindade considerou heresia
a roupa com que a advogada ousou comparecer à sua augusta presença e ameaçou
abandonar o local para punir os mortais com sua ausência.
Sem ver a imagem, julguei
tratar-se de alguma microssaia que subia de encontro ao decote que, por sua
vez, descia ameaçadoramente, mostrando o umbigo, e pudesse aguilhoar a libido e
atrapalhar a concentração do pudico julgador. Mas não. A inadequação foi
corrigida pela infratora apenas cobrindo seus indecorosos braços.
Que tipo de perturbação o decoro
pode sofrer com a visão de braços? Sim, porque o vestido ia até os pés e só
mostrava os braços. Talvez a mesma que sofria o jovem Inácio no conto de
Machado de Assis.
O Tribunal, órgão colegiado a que
pertence o divino julgador, simplesmente lamenta. Lamenta o quê? Não disse. Não
me surpreendo se lamentar a roupa da advogada.
A OAB protesta. Protesto meio
débil, de entidade que às vezes luta bravamente pela justiça e pelo estado de
direito, mas outras vezes apoia golpes na democracia e se cala pela manutenção
do status quo.
O fato é que a advogada,
“indispensável à administração da justiça”, fica humilhada, e com ela todos os
brasileiros.
Fato isolado - como gostam de
repetir os porta-vozes da polícia ante os casos que se multiplicam.
Mas quem não lembra de outro fato
isolado em que uma agente de trânsito foi presa e condenada a pagar indenização
porque multou um juiz?
Ou do lavrador impedido de
participar de audiência porque usava chinelos, sob a alegação do magistrado de
que atentava contra a dignidade do judiciário? Onde reside a dignidade do
judiciário? No sapato do jurisdicionado?
É com roupas que se preocupa o
Olimpo! Comum a perda de audiências e entrevistas por incautos que comparecem
de bermuda, camiseta ou chinelo. Aguardam por mais um ano uma nova intimação e,
então, já convencidos de sua inadequação, conseguem emprestada a roupa para,
finalmente, verem resolvidas suas questões.
Os assuntos que trazem os plebeus
à justiça são irrelevantes: a prisão do filho, os alimentos, o enterro da mãe,
o despejo, a ameaça, o tratamento a que se nega o Estado ou o plano de saúde.
Tudo isso é bobagem diante da importância da roupa correta para estar em
presença da divindade.
Enquanto se preocupam com roupas,
não precisam pensar nos salários acima do teto constitucional, que correspondem,
por dia, a mais do que o trabalhador ganha por mês.
Nem se lembram dos
auxílios-divindade:
- auxílio-moradia, mesmo que o
magistrado tenha dezenas de imóveis, que equivale a cinco vezes o que ganha o
trabalhador para morar, comer, vestir e cuidar da família, enquanto o governo
desmonta programas de casa popular;
- auxílio-creche que abrange do
berçário à pós-graduação do Jesusinho - sim, porque só o filho de Deus pra
merecer tanto privilégio, enquanto verbas pra educação, cultura e pesquisa
científica são desviadas pelo governo para compra de parlamentares;
- aposentadoria como punição
máxima, enquanto trabalhadores são punidos com a morte antes da aposentadoria;
- academia de ginástica no fórum para
magistrados e familiares. Além de outras benesses que fariam inveja à corte de
Luiz XIV, e para as quais não temos tempo nem espaço.
Tudo isso pago pelos trízimos do
contribuinte (27,5%), mais taxas e custas processuais.
O Brasil tem duas castas de
intocáveis. Os de cima, divindades que não podem ser alcançadas pela lei e
pelos mortais. E os de baixo, que não merecem a proteção da lei e são evitados,
por medo de contaminação física e social.
No meio, uma classe média que se
curva subserviente, com olhos súplices, venerando as divindades e esperando merecer-lhes
as sobras, enquanto pisa nauseada nos intocáveis de baixo com medo de que se
aproximem.
E para evitar revoltas, uma classe
sacerdotal trabalha incansavelmente, abençoando privilégios e chicotadas, e
exaltando a meritocracia divina.
O que faz um deus não é a
autoproclamação, e sim o reconhecimento, a veneração e o temor dos fiéis.
Simone de Beauvoir já dizia: “O
opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios
oprimidos”.
Verdade que esses novos deuses
são protegidos pelos Lordes e pelo braço armado do Estado, mas não lhes falta
apoio, idolatria e genuflexão entre os servos e servidores.
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