O AMOR ENCARQUILHADO >> Zoraya Cesar

O entardecer róseo-avermelhado prenunciava uma noite estrelada e morna. Uma noite feliz. 

A casa situava-se perto de um penhasco e, do terraço, podia-se ver e ouvir o mar espancando as pedras, como se quisesse tirá-las do caminho. Portas fechadas e cortinas pesadas separavam e isolavam o terraço do barulho e da música altos vindos do salão. Uma mulher elegante, vestida de preto, brincava com a bengala de madeira de lei e castão de prata que trazia às mãos. Apreciava a paisagem, sozinha, cansada da bagunça. “Como um bando de velhos”, pensava, “podia ser tão barulhento e inconveniente?”.

Rebecca nem sabia o que fazia ali. Que lhe interessava encontrar sua turma da faculdade e respectivas famílias e descendências? Alguns bons amigos já tinham morrido; outros, não puderam ir; e ela detestava a maioria dos que compareceram. Pessoas que conhecera há quase 50 anos, e que agora lhe eram indiferentes. Só fora mesmo por muita insistência de Úrmtia, uma grande amiga, é certo, mas uma cretina. Que estava, nesse momento, lá dentro, bêbada de gim e dando em cima de um antigo affair

A porta abriu e alguém entrou, interrompendo os devaneios de Rebecca. Que maldisse o intruso, e, torcendo para que ele não demorasse muito, escondeu-se no fundo do terraço, atrás de uma pequena sebe. 

homem, encurvado e careca, dava um passo seguido cuidadosamente pelo outro, vagarosamente, como se em dúvida de onde deveria pisar. Chegou à beira da mureta, que batia um pouco abaixo de seus quadris, um tanto trêmulo, como se o esforço de chegar até ali tivesse sido demasiado para ele. Fumava, e o odor doce e levemente apimentado de um Dunhill chegou às narinas de Rebecca, despertando-lhe memórias que ela já cria mortas.

Silenciosa como a neve caindo, Rebecca olhou para o homem, sem ser pressentida. O nariz adunco, a marca do cigarro, o jeito de segurá-lo... Mesmo após tantos anos, mesmo com várias camadas de rugas e flacidez pelo rosto, em qualquer época, em qualquer encarnação, ela o reconheceria.

Era mesmo ele! 

Roberto! Seu grande amor, ali, naquela festa, como? Só o Destino podia explicar a coincidência. Mas o Destino, como sabemos, é um senhor discreto, pouco afeito a dar satisfações, e nada explicou. 

Ela fechou os olhos e lembrou, com uma vividez absurda, de todo o amor que sentira por aquele homem. Seu corpo reagiu em consonância: seu útero estéril latejou até doer, e mesmo sua buceta, desusada e desidratada há mais tempo do que ela ousaria admitir, umedeceu-se. Sua buceta, sua vagina, sua pepeca, sua ‘porta do prazer’, como ‘ele’ a chamava, umedeceu-se! Rebecca sentiu o líquido escorrer em sua calcinha. 

Não tinha mais idade para aquilo. Seus joelhos mal se aguentavam, o coração veio-lhe à boca. E a maldita umidade a escorrer-lhe pelas pernas. Agora, até o bico dos peitos flácidos e caídos estavam duros. 

Um amor lindo. Um tesão quase incontrolável, companheirismo, planos, risadas, cumplicidade. Eram um casal! Ela trabalhou para sustentá-los até que ele terminasse a faculdade. Quando arranjasse um emprego, seria a vez dele pagar as contas. Para Rebecca, ele sempre vinha em primeiro lugar. 

O filme continuou rodando em sua mente, o corpo acompanhando as emoções despertas. Como à época, o coração caiu a seus pés, em finas lâminas cortantes; sentiu a ânsia de vômito e o mesmo gosto de fel na boca que a acompanharia durante vários anos. Viu-se esparramada no chão da sala, em choque, uma boneca de pano desmantelada, sem controle sobre pensamentos ou músculos, um pássaro abatido em pleno voo.

Veio-lhe, nesse momento, depois do tesão, do amor e da decepção, o último dos sentimentos. Ódio.  

Ódio por aquele sacripanta filhodaputa traidor. Investira juventude, dinheiro, suor, sonhos, lealdade, apenas para ser trocada pela cretina da Cecília, podre de rica. Roberto preferiu garantir dinheiro fácil e estabilidade. Pelo resto da vida que passasse com Cecília, bem entendido. E ele passou. Rebecca soube que ele nunca precisou trabalhar, mas à custa de humilhações constantes, vigiado 24 horas por dia por uma vaca ciumenta, escandalosa, possessiva e doentia, que controlava a mesada dele com mão de ferro. 

De que adiantou tudo aquilo, hein? De que adiantou me abandonar, seu idiota? Eu também fiquei bem de vida. Depois, claro, de passar anos com síndrome do pânico, anorexia, insônia; de ficar quase à míngua, penando para me livrar dos credores, vendendo o almoço para comprar o jantar, estudando e trabalhando para pagar sozinha as dívidas que contraímos juntos, o aluguel e a faculdade... a faculdade que você, seu merda, ficou de pagar para mim. 

Sua jugular latejava. O ódio circulava em suas veias.  Foi até ele. 

- Roberto?

Ele se virou, sobressaltado, um velho aparkinsoniado, tão mais velho que ela, e extremamente bem vestido. Tanto sofrimento, tantos anos perdidos por causa de um merdalhão que nem mais homem era, amargou-se ela. Pelos hirsutos e grisalhos ponteavam aqui e ali, na pele flácida e amarelada. A boca, murcha, em nada lembrava os lábios carnudos e gulosos do homem que um dia a beijara apaixonadamente, com sabores de eu te amo. Manchas senis recobriam rosto e mãos. Olhos despestanados baços, abrigados sob uma inchada ptose palpebral olharam para Rebecca. 

E reconheceram-na imediatamente. Os amantes sempre se reconhecem, mesmo passados os anos,
O entardecer não se desmentiu.
Para Rebecca, aquela fora uma noite feliz. 
mesmo com as pesadas mudanças impostas pelo tempo. Os amantes se reconhecem.

Ele deu um passo claudicante para trás, chegando perto da mureta baixa demais. 

- Durante muito tempo esperei por esse momento, Roberto.

O homem balbuciou algo meio indistinto, mas que ela compreendeu perfeitamente: ‘que momento?’

- Esse – disse ela – O de te dizer adeus.

E, com a bengala, empurrou-o mureta abaixo, em direção às pedras que beijavam o mar. 

Comentários

Celeste disse…
Não sei o que dizer. A velha guardou rancor por 50 anos. Não vou mais frequentar esses encontros.
pode-se dizer que foi um encontro marcante!
Marcio disse…
Esse Roberto deveria ter desconfiado que todo encontro de ex-colegas de faculdade é uma roubada.
E a Cecília, tão ciumenta, como deixou que o Roberto fosse?
Será que ela já tinha sido assassinada insidiosamente pelo aproveitador?
Unknown disse…
A culpa foi da Úrmtia. Ela não deveria nunca ter largado a Rebecca sozinha... Tinha que levá-la pra beber gim também... O Roberto ia cair de qualquer jeito, porque um velho aparkinsoniado perto de mureta baixa é sempre fadado ao fracasso... Ela se sentiria vingada, sem sujar as mãos... Ou a bengala kkk
Anônimo disse…
Q cara azarado, namora uma pobre, separa, casa com uma rica ciumenta, adquire parkinson, consegue ir sozinho numa festa , e é morto pela ex-namorada pobre! Ninguém segura uma mulher com ódio.. ..
Clarisse Pacheco disse…
Nessa altura do campeonato, ela fez foi um favor a ele...
Anônimo disse…
Ah, Lady! Nem sei o que dizer! ADORO esse seu lado Killer! Fenomenal!
Albir disse…
Vou acabar condenado no juízo final por torcer pelos seus assassinos.
Carla Dias disse…
Ah, que eu gostei dela, minha gente! Poxa, Zoraya, assim como o Albir, acabo sempre na turma dos seus assassinos.

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